A respeito de “Descolagens”, poemas de Salomão Sousa (1)

perfil-poeta-salomao_sousaEIS-NOS diante de um pequeno grande livro de um poeta no pleno domínio de seu ofício.
Importa começar pelo título. Sabe-se que “des·co·la·gem(descolar + -agem) é substantivo feminino. 1. .Atoou efeito de descolar o queestava colado. = DESCOLAMENTO ≠ COLAR. 2. [Portugal]  .Ato ou efeito dedescolar (o avião). (Equivalente no português dePortugaldecolagem.) ≠ .ATERRISSAGEM. Outra pista vem da capa assinada por Carlos Alberto,  criada sobre foto de Zenilton Gayoso – clicada em Mambaí (GO) registrando uma casca de inburana que se descola. 
Tema dado. Inicia-se a viagem.
1
O navio numa lâmina estática que tremula
por insistência de ser visto de um ponto degradado
Ser inútil como um navio nesta estática
sem nada para entregar no ponto de chegada
se não se abarrotou no ponto de partida.

A imagem das flores do ingazeiro e da malva dão a medida do vazio que essa “descolagem” inicial indica ao leitor um rumo do que tem “rápida queda/pelo instinto de existir” – a poesia que se colherá a seguir:
4
Navio ancorado num porto
vazio / para que saiam iludidos
os que aguardam descarregadores.
O segundo poema é um longo poema discursivo a partir do título “Inicialmente, a chuva cai sobre uma pedra”. Então, o poeta se levanta em meio à chuva para anunciar a exaustão e a impotência:
“…não há como 
contornar a fronteira para ser útil a uma pátria,
ou ligar o fusível da claridade da estação.”
O poeta – ele mesmo se declara em busca de uma poesia que “espelhe o mundo da fragmentação e da diluição do acúmulo do tóxico“. Espelhar o mundo é o desejo de toda a boa poesia. A imitação da realidade, a criação de um “espelho” em que o leitor possa enxergar este mundo que o poeta enxerga é o cimo da criação literária. Se o autor sai dessa tarefa com maior ou menor grau de êxito cabe apenas ao leitor dizê-lo. Há umas certas instâncias de validação e de confirmação do rito próprio de uma época, mas só o leitor – quando os temos para a poesia, é o grande árbitro.
Ora, sabe-se que no Brasil, para usar a expressão poética de Wislawa Szymborska² (1923-2012) – somos “dois em mil” os que lemos poesia e gostamos de ler poesia (leia o poema da poetisa prêmio Nobel de 1996, ao final deste post) – falta-nos a ousadia de dizer poemas em públicos, faltam certames, incentivos que não os de governo e outras iniciativas mais que façam a poesia parte natural do dia-a-dia da população.
Um livro, pois, como este – que eleva a mais de uma dezena os éditos do autor (ver bibliografia¹) merece por parte de todos os poetas, críticos (se ainda existem!) e leitores em geral a mais sincera e franca acolhida. 
Consciente do que quer, Salomão vai “descolando” o que pode para nos mostrar sua capacidade de interpretar o real e dele partir para o “despegue” – donde os poemas traduzidos por parceiros do poeta goiano, dão o tom de voo alto (ou navegação a alto mar) e para além dos limites do centro-oeste brasileiro, onde o autor milita (Brasília, como residência; Goiás  como terra de origem).
O poeta Salomão Sousa exerce em “Descolagens” a razão poética – como a definiu J.G.Merquior recorrendo a um poeta para fazê-lo: “Reason in her most exalted mood” (Woodsworth); isto é, peleja para “dominar o sentimento e a fantasia” em versos de uma dicção própria. E o ofício da poesia não dá tréguas; é preciso que “o faroleiro” exerça a talvez única “razão possível” – a razão poética – como em “Ainda que não venha nenhum barco (p.34)”:

Ainda que não venha nenhum barco
e bruma alguma traga a carga de lenha
Ainda que o barqueiro venha louco
e todo o aço da certeza afundará
Ainda que o vento atormente com fúria
e vá a madeira polida afundar-se
Ainda que a carga seja a lâmina
com o colo certo de degolar
Ainda que na porta anunciem
que a florada do dia irá murchar-se
Ainda que seja um vasto mar
e a alma em deleite vá secar-se
Ainda que o mar seja uma rocha
e no deserto o coração vá navegar
Ainda assim o faroleiro acenderá.
Essa nímia esperança é o que parece afastar da vivência urbana do poeta o “Temor de viver só numa fotografia” (p.29), donde se depreendem os fiapos da deterioração do real:
“temor de viver só numa fotografia
articulada/crestada com artifícios
não ter passado por uma bruma
por um dorso/pelas arcadas da avenida
por onde anda a sensatez/ser arco
inflexível a atirar ao acaso
o medo de um vizinho ruidoso/cheio
de espuma das noites bêbadas
sem a tez do suor/as mãos que saúdam
que não articulem os gestos da degola”
(…)
“outra vez o temor/outra vez o ridículo

e se alguém vai estar morto/outra vez
na forca de uma cela o novo herói.”
No entanto, “Ainda que não venha nenhum barco”, o poeta “navega”:
Navego e o mundo é só onde estou
Navego e o mundo é só onde estou
Dizem que há nortes com flores e flautas
Dizem que há largos portos,
o prumo nas mãos dos nautas.
(…)
Navego num mundo sem prumo e sem nauta.”
(p.35).
E entre “o imaginário de ontem e as mazelas do presente” (como diz José Fernandes, no posfácio – citando o artesanato do poema “Ulisses”, p.21/2), segue o bardo Salomão Sousa afirmando sua razão poética:
“E a palavra de hoje é só para marcar
a presença num barranco/num corte
sobrevoado de insetos. Demarcar
a existência da palmeira no preenchimento
de um vão da colina. A incompreensão
que nos persegue ainda que seja fértil e útil.”
(p.43).
Das página 75 a 83, o leitor encontrará oito poemas traduzidos ao espanhol.
Ao leitor deste blog, recomendo a leitura, sublinhando que essa primeira aproximação de “Descolagens” tem o caráter provisório de admiração e respeito por um poeta e uma poesia que, diferente da minha em quase tudo, ainda assim faz-me navegar com simpatia e com prazer, porque admito com o mestre Antônio C. Villaça – em carta ao autor nos anos 80 que a poesia de Salomão Sousa continua sendo:
“…um poeta integrado na angústia e na procura de sua geração, atento à vida e seus apelos fundamentais…lutou e luta para afirmar-se na sua inteira dignidade, tem de fato um compromisso com o homem.”.∴◊∴