O ESPECTRO DA DÚVIDA
Salomão Sousa
Solidade Lima, com este livro As lâminas do tarô e os 12 trabalhos de Hércules, percorre com os mesmos passos de T. S. Eliot o caminho para o Modernismo, só que num percurso inverso, visando se distanciar do excesso de dissolução e do cansaço de excesso de modernidade. Como o bardo norte-americano naturalizado inglês, vale-se de experiências místicas, do recurso de validar o Simbolismo, da retomada da forma e do verso fixos, da mesma raiz do Tarô, em tons góticos –, sem a preocupação de desconstruir instituições ou rebelar-se contra as idiossincrasias de sua época, mas para afirmação de que todo formato de poesia deve conter alguma participação crítica sobre a presença do homem numa dada realidade. Só que a realidade entranhada na poesia de Solidade Lima não é aquela que explicitamente se mostra enquanto paisagem ou ambiente de ação ou clausura. A realidade por ele arquitetada praticamente se erige com os materiais da poesia clássica, e assim se edificaria se não estivesse despojada do Idealismo.
Numa contemporaneidade em que há o predomínio da poesia de invenção, alcançá-la se faz com maior sucesso pelo meio do Sincretismo e do Surrealismo. Em algumas regiões da América Latina, o Sincretismo é milenar e aí a poesia de invenção melhor se dissemina, pois há maior diversidade de elementos míticos nacionais à disposição do poeta. Destaque específico para o México de Victor Sosa. No entanto, outras ferramentas sempre estiveram disponíveis para o criador. Solidade Lima – independente de sua opção pela forma fixa neste livro, após publicar três outros em verso livre; bem como de elencar sonetos avulsos na terceira parte, compostos em épocas distintas e de temática variada – vem de um Sertão de denso Sincretismo e escava experiências milenares do homem para traçar sua Divinatória – termo insuficiente para cunhar todo o espectro da ação do poeta – do gesto humano de fixar-se no Universo. Vale-se do Tarô, do mito e de diversos outros elementos que possam fazer manar de dentro do indivíduo/criador a melhor experiência metafísica. No entanto, quem quiser interpretar os aspectos dessa fluição para encontrar espectros surrealistas, encontrará dificuldades para assinalá-los, pois não encontrará fragmentação do mundo e muito menos da personalidade do indivíduo na imagética em que os poemas são construídos.
O Tarô – justamente pela polissemia do embaralhamento para busca dos “quatro caminhos” – é a junção de elementos da experiência da história e da cultura. Talvez por estes quatro caminhos T. S. Eliot tenha chegado aos Quatro quartetos, e, reconhecidamente, abordado a Terra devastada. Cada Carta carrega uma filiação cultural e retrata uma época. Talvez criado para escapismo de religiões monoteístas, pois surgiu num período de total aventura de descobertas como a Cabala e a Alquimia.
Quando o Tarô se insere na modernidade, serve para busca de interpretação do interior do homem – esse bloco informe sem elementos químicos para composição de solidez, esse Século XV de onde sempre emergirá o domínio da dúvida, que é o fermento para o processo criativo. Por aí passaram Carl Jung e T. S. Eliot, e agora nele aporta Solidade Lima. Descrevendo só as Cartas dos Arcanos Maiores, fica aberto o jogo “na terna eternidade destes átimos”.
Vale-se do Tarô e do mito dos 12 Trabalhos de Hércules como se recorresse a eternos ideogramas chineses para expandir a compreensão de existir e de buscar onde se alocar no tempo, como “se se despisse o mundo da má sorte”. Mas esses elementos são insuficientes para afirmação de que genes surrealistas tenham preponderância na imagética da poesia de Solidade Lima. Ao descrever os Arcanos e os Trabalhos Grande Herói, alguma estranheza obscura seconstrói dentro de cada peça do livro sem que prevaleça o lado volátil da individualidade do poeta. A sua metafísica não é de ebulição do espectro da individualidade.
Como um Bobo da Corte “sorrindo da morte”, inicia seu livro descobrindo que tanto “o Zero ou Vinte e Dois tudo seria”. Num processo de invenção mística ou mítica, o Homem inventa para explicar o que antecipadamente deseja ver esclarecido. Assim, tanto faz o Zero ou o Vinte e Dois, tudo vai dar naquilo a que a está predestinado, mesmo ciente que o 21 estará sempre distante de esclarecer a totalidade. O homem, ao ler no Tarô ou na construção mítica a sua presença no mundo, tanto descreve e organiza a experiência divina quanto nega experiências sincréticas que foram insuficientes para apaziguá-lo em suas buscas. E quem assegura que o poeta quer uma divinização que defina e encerre as incertezas, se a sua atividade é de ampliar o espectro da dúvida? Para cada compreensão posta na mesa pelo poeta, outro elenco de dúvidasse abre.
Tanto na leitura do Tarô como dos trabalhos de Hércules, o poeta não se preocupa em antecipar sua compreensão do mundo, atendo-se mais em deixar que o significado possa ser lido pelo leitor em cada Carta que lhe é posta. Em poucos momentos exalta-se numa conclusão antropológica de seu tempo. Ao ler o mito da Hidra de Lerna, Solidade Lima compara-a ao “Estado que, acorrentando o povo, / constrói outro imenso monstro novo / para devorar, cair logo em seguida”. Pensamento que anda de parelha com Hanna Arendt, para quem o estado totalitário não dura para sempre. Este é o consolo – a hidra tem permanência assegurada só enquanto mito. Tem também o mito do Javali de Erimanto, que serve para lembrar outros assombros modernos: “até hoje assombra / outras casas e gentes com a sombra / dos lascivos dentes da corrupção”. Se não fossem para estas leituras, seria inútil a experiência do mito e seria desnecessário pedir o embaralhamento. Prova de que o criador pode escapar do real, mas a invenção está nele aprisionada como a estátua no corpo da pedra, e de que a leitura nem sempre é a desejada depois que são dispostas as Cartas.
Para chegar à sua invenção – na qual atua com excelência peculiar – Solidade Lima não seguiu a trilha do Barroco, mas da vivência do Simbolismo e do Surrealismo. Também essas raízes melhor se encaixam no sincrético do Tarô e das referências míticas selecionadas pelo poeta. No Soneto do Arcano XIII, esta tendência se manifesta com muita clareza:
“A delícia do sangue me alucina...
Conviva das caveiras e coveiros
devoro, parte a parte, o mundo inteiro
sem a sede saciar dessa chacina,
(...)”
E o soneto segue com outras referências simbólicas, com palavras grafadas em maiúsculas (Foice, Morte, Eu). É até oportuno indagar se vivemos um novo limiar de afirmação do Simbolismo através da experiência gótica da Pós-modernidade, pois seus elementos povoam a literatura, os jogos, a vestimenta e os filmes nesse abrir-se do Século XXI, tão distante do Século XV da invenção do Tarô.
Enfim, não é possível classificar a poesia de Solidade Lima apenas com o uso de um reagente. Há uma polissemia de elementos da tradição da poesia universal neste As lâminas do tarô e os 12 trabalhos de Hércules, que confirma a inventividade de um autor atento à realidade e à fundamentação do conhecimento mítico. É clássico, sem ser classicista. É simbolista, sem denodo de época. É poeta de invenção por atuar em determinada época, pela obrigatoriedade sincrética do território por ele ocupado e pela preferência gótica dos elementos míticos. Pode iludir com a retomada da forma fixa e da historiografia desenhada na antiguidade – no entanto, toda retomada é crítica, pois instiga o criador a uma reaprendizagem e a uma coragem de enfrentamento do que impera na territorialidade de seu tempo.
Ao longo da segunda metade do Século XX, a poesia se diluiu tanto, criando uma exaustão da experiência da desintegração, que o surgimento de um poeta novo e ágil como Solidade Lima, dominando os seus rudimentos, é alvissareiro para reconstrução da credibilidade da Poesia Brasileira – mesmo que tenha de continuar lidando com elementos de uma realidade que insiste em se realizar com penumbras desfavoráveis, sem nunca abrir perspectivas deconforto para o Homem. Quando fala em manhã, é “a manhã – atômica semente”. Quando toca na estrela, é “a estrela que dança e morre à míngua”. O poeta tem de lidar com o tempo aferrado à esperança de que as mãos podem criar abertura para a claridade. Se é possível adivinhar só através das operações do obscuro, Solidade Lima esculpe numa “força inútil, nula e vã” para sangrar “dos continentes a manhã”:
“(...) os corações
que dessas mãos em tecla esculpem sóis.”
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