Discurso de recepção na Academia de Letras do Brasil
Kori Bolivia
Neste
momento eu gostaria de ter alguns anos a menos para poder brincar como o fazia
antigamente. Não que eu agora não brinque, mas a brincadeira era bem outra.
Hoje
gostaria de brincar de apresentar a vocês as coisas bobas com as quais eu me
distraía e que, de repente, tornaram-se matéria-prima e já não consigo vê-las
como bobas, mas sim como ideias que se tornam pensamentos e pensamentos que se
convertem dentro da mente em mecanismos que acabam funcionando como parte de
sistemas complicados que, por meio das mãos, se depositam em papéis como
palavras, que formam poemas que acabam sendo parte de poemas em livros, em
jornais, boletins e discursos.
Hoje não
vou brincar, minha palavra tem outra missão, que é a de apresentar uma pessoa
que há alguns anos conheci pessoalmente, quando ouvi falar de um jornalzinho de
literatura ainda no último ano do século passado: o zine Chuço, do qual viram a luz 18 números. Ele foi editado pelo poeta
Salomão Sousa, para resistência, segundo ele, a um editorial do editor do
caderno de cultura do principal jornal de Brasília, que disse ser “desanimador
ver uma cidade concebida de forma tão original gerar não talentos compatíveis
com a criatividade de suas linhas e sim um punhado de poetas bisonhos e
escritores medíocres”. No primeiro
número do Chuço, Salomão Sousa,
através de pequenos tópicos, faz um balanço cultural da relação entre imprensa,
literatura e política em Brasília. São questões que perduram até hoje:
“Os meios de comunicação como podem ser comprados pelas
forças políticas e pelos domínios econômicos, são pagos para silenciar os
intelectuais. As forças políticas e econômicas são inimigas dos formadores de
opinião. Onde há conhecimento, esclarecimento público, não pode haver domínio
do político e do econômico como forças desvinculadas do social. (...)”.
No último tópico desse primeiro número, Salomão Sousa já
enfatizava a questão que dominará os debates que até hoje se desenrolam: “O
homem, ao perder a ética e a educação artística, não tem outra forma de se
expressar a não ser pela violência.” Gostaria de salientar que, entre os vários
seguidores, o Chuço contava com o entusiasmo
de poetas como Cassiano Nunes e Antonio Miranda. A pequena publicação foi
ganhando visão pelo Brasil, consolidando as relações de seu autor com uma rede
de editores de zines e teve como irmão em Brasília o chamado Jornal do Alan. Em1998, o Chuço mereceu o Prêmio Capital de
Resistência ao Ordinário, do zine O
Capital, editado em Aracaju por Ilma Fontes, e a Biblioteca da ANE recebeu
neste momento, por solicitação da saudosa Zita de Andrade Lima, uma coleção do Chuço, doada pelo autor.
Mas, tantas vezes citei o nome do poeta Salomão Sousa
e, talvez, perguntam-se os senhores com razão: quem é o novo escritor que hoje
nos preparamos para saudar? Pois nada menos que um menino que nasceu em 19 de
setembro de 1952, recebido com uma salva de tiros de espingarda pelo senhor
João Miguel Bento, na fazenda Calvo, município de Silvânia, do sul de Goiás,
que assim anunciava o segundo filho que a senhora Maria Delmira de Sousa Bento lhe
dava: Salomão Sousa.
Aos dez anos, o menino Salomão foi alfabetizado pelo
andarilho José Ribeiro e, em meados de 1964, a família transferiu-se para a
casa própria em Silvânia. Lá recebeu a influência do avô materno, Sansão
Fernandes de Sousa, que mantinha literatura de cordel escondida em uma canastra.
Salomão leu permanentemente esses poucos livros, recebendo também a experiência
cultural de parlendas, cantos religiosos, música caipira e tentou a composição
de pequenas quadras desafiado por outro andarilho. Há muito para se dizer sobre
essa etapa que alimentou o seu espírito poético e de contato com a natureza, mas
ficará para outra ocasião. Diga-se agora
que ajudou os pais na carpina, levou comida para os peões na roça, descaroçou
algodão, cuidou, na falta do irmão mais velho, dos irmãos mais novos, brincou
com facão e juntou insetos na bacia de lavar roupa, objeto que deu origem a um
poema de seu próximo livro:
A morte
da bacia de Flandres começa
quando a
atacam os furos e ninguém a recolhe
para a
hora de alvejar. Enche-se de húmus
para o
poejo, a hortelã. Floreira num jirau.
Em Silvânia trabalhou como balconista numa loja de
secos e molhados, e aproveitava qualquer trabalho que pudesse lhe render alguns
trocados para ir ao cinema. Em um desses trabalhos, como moleque de recados
para a mulher do primeiro gerente de banco da cidade, teve acesso a uma edição
ilustrada da Divina Comédia. Aquela
senhora permitia que tivesse acesso ao livro, na mesa da cozinha. Antes de se
transferir para Brasília, trabalhou como porteiro e bibliotecário da Biblioteca
Pública. “O balcão” também aparecerá em seu próximo livro:
Moscas quietas a lamber sobras
de açúcar, gotas que não couberam
na taça do peão com o embrulho
de arestas para a cerca antes de uma restinga.
Superfície para a embriaguez, e garrafas
que serão espatifadas. Aprendizagem
de que há exigência de ordem para existir.
Afirma que, para fugir da solidão e se esconder da
própria miséria, passava longas horas na biblioteca ou lendo em casa. Entre os
seus escritores estavam Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade e Cassiano Ricardo. Publicou seu primeiro poema sem rimas ao redor dos
16 anos no jornal da cidade, e encheu um caderno com sonetos para demonstrar
aos amigos que ele era capaz de escrevê-los: isto lhe serviu para a compreensão
da mecânica da poesia, segundo ele. Ao ler jornais usados, cortava e colava
poemas publicados em O Dia e Correio da Manhã que chegavam pelo
correio, para que um comerciante os usasse como papel de embrulho. Assim, montou
uma coleção aleatória como um caderno de 400 páginas. Ainda em Silvânia, ganhou
um concurso de redação sobre D. Bosco, que, em 1968, o levou até São Paulo; e um
concurso de declamação com um poema de Fagundes Varela; além disso desempenhou-se
como ator em uma peça teatral, tendo sido essa sua experiência cultural até os
18 anos.
Conta-nos o poeta que a Brasília chegou em 6 de
janeiro de 1971, “com uma malinha de roupa, uma caixa de livros e poemas, e o
Atestado de Bons Antecedentes tirado em Silvânia, sendo acolhido por seus
padrinhos. Estudava à noite no Centro de Ensino de Vila Matias e aos domingos
trabalhava numa banca na feira de Ceilândia. Durante o dia montava o jornal
estudantil e a Biblioteca do estabelecimento, que deixou com mais de 3.000
exemplares de livros ao terminar o curso Científico. Ali iniciou suas relações
com os artistas da cidade, tendo sido aluno da conhecida professora Dad
Squarisi e de Anito José Steinbach, poeta que, à época, trabalhava no
Itamarati.
Ingressou na Fundação Educacional do Distrito Federal,
hoje Secretaria de Educação, por concurso público, e estudou jornalismo no
Centro de Educação Universitária de Brasília, CEUB, ampliando seus contatos com
os escritores da cidade. Foi aluno de nosso fundador o escritor Almeida
Fischer, e outros, que lhe abriram o caminho para seu acesso à Associação
Nacional de Escritores, ANE, mesmo não tendo, ainda, livros publicados. Os
Ministérios da Fazenda, do Trabalho e do Bem-Estar Social o tiveram como
funcionário. Ao alugar um quarto para morar em Taguatinga, conheceu a jovem
Francisca Andrade Menezes, hoje de Sousa, aqui presente. Casaram-se e três filhos
selaram o amor: Carlos Alberto, Saulo e Vítor, que lhes deram seis netos: Laura
Beatriz, Maria Clara, Davi, Murilo, Lyra e Felipe.
Em 1978, lançou os livretos Esbarros I e II, com a
apresentação de Ary Quintela. Comenta
que não tinha vocação para a poesia Marginal, apesar de Caderno de desapontamentos e Criação
de lodo, livros posteriores,
terem sido afetados por ela, pois o período reclamava comunicação agressiva, de
resistência.
Seu primeiro livro publicado foi A
moenda dos dias, em 1979, que (completa este ano 40 anos). Publicou com recursos
próprios e pela Thesaurus. Este livro teve mil exemplares vendidos de mão em
mão no transporte público e em repartições. Também mereceu uma resenha na Universidade
de Harvard entre outras manifestações. A Dra. Naomi Hoki Moniz, hoje Diretora
de Estudos Portugueses na Universidade de Geogetown, diz em texto que foi
publicado na Revista Iberoamericana;
“Sua utilização (de Salomão Sousa) de
uma tradição poética permite diferenciá-lo do muito que existe no país de
modismo de vanguarda superficial que caracteriza certos movimentos. Ele evita
traços de populismo e “espontaneísmo”, constrói um discurso despojado e
simples, mais comprometido com a veracidade do que está sendo dito do que com
obscuras e vazias ordenações estéticas. ” (Vol. L, 126 de 1984)
Ao
comparecer para um lançamento em Brasília, Mário da Silva Brito declarou, ao
receber o livro das mãos do autor, que já o havia lido na sala de recepção da
editora Civilização Brasileira. Drummond acusou o recebimento, dizendo “eu, de
Itabira, lendo o poema sobre Ceilândia”.
Fazemos notar que, em muitos momentos, o livro perpassa a história da
mãe do autor.
Salomão
Sousa, no ano seguinte, publicou pela editora Civilização Brasileira, com
patrocínio do Instituto Nacional do Livro (INL) hoje extinto, em um único
volume, O susto de viver e reeditou
de A moenda dos dias. Nova resenha,
desta vez assinada pela poeta e professora Teresinka Pereira, saiu à luz em
Harvard e o saudoso escritor Nilto Maciel saudou o livro com estas palavras:
“ A cronologia sentimental de Salomão
Sousa obedece a uma lógica do pessimismo. O universo pode ser desigual no tempo
e no espaço, porém o indivíduo é apenas um dado, ‘pedra atirada dentro do rio’.
Se antes ‘entendia cada silêncio que estivesse por perto”, agora ‘é impossível
passar ileso por qualquer despensa do vazio ou do silêncio’. Se antes
conservava ‘um medo leve’, agora ‘o gume da tristeza não fende o medo’ “.
Ao
aproximar-se o Séc. XXI, Salomão Sousa sentiu a necessidade de fugir da poesia
parente do Tropicalismo ou das vanguardas dos irmãos Campos. Adotou a
pulverização do verso, sem ser, necessariamente, puro neobarroco ou poesia de
invenção ou surrealismo.
O
poeta atuou também exerceu o cargo público não só nos colégios, mas como
assessor parlamentar no Congresso Nacional. Acompanhou mudanças de ministro,
CPIs de impedimento, palestras, reuniões e relatórios confiantes em mudanças
para o país. Declara que começou a trabalhar em 1976 de forma enclausurada,
quando o Congresso Nacional tinha pouca importância. O primeiro chefe, Dr. Gilberto, manteve-o por
alguns anos dentro de sua sala, e na despedida dos colegas de trabalho, usou
versos de Walt Whitman para sinalizar o novo momento de sua vida. Hoje, Salomão
Sousa está aposentado do serviço público, depois de 45 anos de trabalho.
Em
4 de junho, dando continuidade às comemorações dos 40 anos de seu primeiro
livro, lançará no Beirute os livros Desmanche
I, e de poemas, e Poemas e andorinhas, que traz textos
híbridos em que aborda questões sobre comportamento social e dá prosseguimento
à montagem de uma compreensão da poesia brasileira, estando todos agora já
convidados. Sobre o primeiro, o poeta
Sergio de Castro Pinto, no jornal Contraponto,
da Paraíba, diz que o poeta “Salomão Sousa submete a desmanche a máquina do
mundo a partir de uma linguagem que, para muitos pode soar como uma sintaxe
invisível, mas que, na verdade, está a exigir do crítico, do ensaísta, uma
exegese mais apurada, livre de postura cartesiana com que costumamos
administrar a realidade. Desmanche I
situa Salomão Sousa num espaço à parte no âmbito da poesia brasileira contemporânea.
”
Desde a juventude nosso escritor foi um
grande missivista e lamenta que as redes sociais tenham restringido a
comunicação a simples gestos mecânicos. Diz ele que é a “contingência de um
mundo que traiu o homem pela eletrônica”. Em uns fragmentos de um poema
endereçado por ele a Maria Inês, de quem diz não recordar quem foi, em julho de
1996, e cuja cópia o autor guardou e à qual tivemos acesso, pergunta: “(...) onde estarão as quadras que fiz aos
nove anos? /Haverá um depósito delas num céu de Dante? /Hoje não tenho nenhum
sentimento de angústia. ”
Participou de encontros internacionais
no Méxíco, no Peru e no Equador e em 2011 ganhou o troféu Tiokô como
personalidade goiana que se destacou fora de Goiás.
Como tudo o que se inicia deve ter um
fim, termino esta oração de acolhimento ao escritor e poeta que ocupará a
cadeira nº X cujo patrono é Manuel Bandeira, e cujo último ocupante é o escritor
e professor Carlos Alberto dos Santos Abel. Salomão Sousa, cuja poesia não
deixa de estar presente nos dias críticos pelos quais passa esta bela terra brasileira,
recebeu as seguintes palavras de Jorge Amado sobre sua obra: “Original e
humano, sensível e consciente. Poesia que não é cera, é chama.” Com este poema,
parte do livro Vagem de vidro, de 2013, os deixo:
O homem
definitivo
Não
insana com ausência,
Com
justiça cerrada,
Encontros
ao acaso.
Qual o
encontro
Não se
desenlaça
Se o ata
o furor,
Se o
cheque compra
Na praça
o parceiro?
O homem
definitivo
Não traz
coágulos
Do
desabraço,
Da
sementeira
Em
despedaços
Iconografia
A trajetória bem-sucedida do poeta Salomão Sousa
João Carlos Taveira
Desde “Safra Quebrada”,
antologia pessoal de 2007, passando por Vagem de Vidro, Descolagem e Desmanche I, de 2013, 2016 e 2018, respectivamente, até chegar a Cascos e
Caminhos, de 2020 (o mais ambicioso dos livros de poesia de Salomão Sousa),
muita água passou debaixo da ponte. Nesse interregno, o autor de Ruínas ao
Sol também publicou livros de resenhas e artigos, a saber: Momento Crítico,
textos, crônicas e aforismos, Brasília: Thesaurus Editora/Fundo de Apoio à
Cultura, 2008, Poética e Andorinhas, 2018, e Bifurcações, 2022, ambas
Brasília: Gráfica Serafim, edição do autor.
Com exceção de Safra
Quebrada, que engloba dez livros de poemas publicados entre 1979 e 2007, os
outros três são de poesia inédita e algumas propostas autorais. Até Vagem de
Vidro, por exemplo, Salomão raramente, mas muito raramente mesmo, dava título
aos seus poemas, que seguiam curso dentro do volume impresso como um rio
caudaloso arrastando tudo que encontrava pela frente. Mas, a partir de 2018, em Desmanche I, já intitulava os poemas e procurava uma diagramação mais
arejada, o que certamente trouxe outra visão sobre sua poesia.
O livro de 2020, Cascos e
Caminhos, é um caso totalmente à parte, pois insiste na procura de um caminho
novo, já que seu autor não considera laudatório o discurso fragmentado que
apresenta, partindo da ausência de pontuação e principalmente na construção de
estrofes irregulares e versos um tanto escatológicos. Por outro lado, não
esconde sua nítida preocupação ideológica, em relação ao momento político
vivido no País. E traz também um pormenor que, às vezes, deixa incomodado o
leitor, porque os títulos das peças têm no início praticamente a mesma
palavra-chave: biografia… — com as raras exceções que só vão aparecer no fim do
volume —; e isso recrudesce ainda mais o nosso espanto e cria uma atmosfera
paradoxal em decorrência do que é descrito em versos livres, sem rima e sem
nenhum tipo de preocupação formal.
Aliás, o poeta é
literalmente contrário ao que se denomina “camisa de força” e a qualquer
fundamento técnico na construção de sua poética. Filosoficamente falando, ele
nunca escondeu o fato de estar sempre à procura de um seguimento diverso de
quaisquer práticas e disciplinas caracterizadas pela austeridade e pelo
autocontrole, postura que, para muitos escritores, acompanha e fortalece a
especulação teórica em busca da verdade literária.
Proveniente de uma poesia de
caráter telúrico, com passagem pela geração mimeógrafo ou, como quer alguns,
geração marginal, Salomão Sousa muito cedo acabou por afastar-se daquele grupo
e criar um estilo que melhor se adequasse às suas pretensões literárias. Optou
pelo verso branco, sem rima e sem conexão sintática. Intento que foi alcançado
com méritos artesanais bem-sucedidos. Sua poesia, hoje, não tem seguidores nem
mesmo parceiros de escola; deliberadamente avessa ao academicismo, constrói-se
com aquela originalidade característica dos espíritos rebeldes e
questionadores, sempre bafejados pelos ventos do inconformismo.
Entretanto, pode-se afirmar,
sem receio de equívoco, que a poesia de Salomão Sousa, nesses mais de 40 anos
de publicação, tem conquistado leitores pelo País afora, da mesma forma que o
faz fora dele, a exemplo de suas idas ao Peru, Chile e Equador, com participação
em uma antologia na Argentina e outra na Espanha. Também tem admiradores na
Cidade do México. Ali participou de encontros com escritores locais e
estrangeiros, leu poesia, trocou livros e fez visitas de grande proveito, numa
de suas últimas viagens literárias antes da pandemia do coronavírus.
O fato é que inspiração não
lhe falta. Pela diversidade de temas propostos nos livros supracitados, dá para
perceber sem nenhum esforço que se trata da visão minuciosa de um observador
atento, em busca de sua aspiração maior, que é firmar-se cada vez mais como
poeta moderno e libertário, filiação herdada talvez de um José Godoy Garcia, de
um Thiago de Mello.
Salomão Sousa, por outro
lado, se mostra seguro e resoluto diante das dificuldades de seu ofício. Mas
sabe que o caminho escolhido foi o mais acertado, porque representa a aura
absoluta que dá vida e contorno à sua personalidade artística. Por isso, aceita
o desafio com humildade e, sobretudo, com a cabeça erguida e os olhos abertos.
Que as musas do parnaso, desprevenidas, o aguardem.
João
Carlos Taveira, poeta, ensaísta e crítico, é mineiro de Caratinga e possui
diversos livros publicados. É colaborador do Jornal Opção.
Poesia que percorre caminhos e encontra miragens
Sônia Elizabeth
Um poeta que inicia seu livro com versos assim: “Enganou-se quem partiu/para legar-me ao abandono. /Uma caravana de formigas/entra por minha porta” é merecedor do cheiro bom das folhas de eucalipto sacudindo perfume pelo seu rosto. Ou então da brisa suave resvalando por entre os capins, ainda que insetos voadores procurem abrigos na garagem comum de qualquer casa, em especial a casa do vate, ficando ali inertes, à espera do último suspiro.
A poesia de Salomão
Sousa, nesse livro Certezas para as madressilvas, é um oceano de
procuras e achados, descobertas, constatações. Nunca se desprega da aba do
cotidiano, o existente, experimentado, visto e palpável. Então, muitas vezes
beira a dureza, justamente porque os versos são reais e batem, martelam o
calcário da vida, porém abertos a preocupação constante com os bichos que o
cercam, o seu habitat: “…Não salvei o meu quintal, os ovos de meus pássaros…” E
a estilística dos quintais: “…Folguemos com o tema de amadurecer amora…” (“O
tema de amadurecer a amor”). Imagens bonitas, a observação dos frutos, suas
entranhas: “…ou cajás grátis/só porque são ácidos e de entremeadas nervuras…” (“Dourada
sineta”). As dores que naturalmente surgem das incertezas, ferindo corpo e
alma. É preciso remédio: “…O pote de unguento posta-se sobre a mesa/para quando
minguarem as certezas… (“Rumos de Siracusa”). Salomão recria a linguagem com
inteligência solta e livre, um toque natural em tudo: “…Há a obediência da
terra/quando acertamos a charrua,/experiência antiga de revolver,/talos
convenientes, espigas…” (“Ares dos Césares”). Versos bem elaborados, ricos,
ouro puro.
A vida é calabouço,
regras, principiados. Opaca luz onde o martírio se impõe, a letra morta: “…não
fez a contagem, quem implantou a cerca/não sabia como deixar uma madeira
solta/e no instante da fuga aprisionou-se…” ou “…não há como negar o DNA da
bala/se a lataria prova, se o sangue coagula/e a medula imobiliza a fala e a
retina…” (“A mútua negativa”). “Oratio fascio” é um poema magnífico,
antológico, evocativo. Firme propósito de ser o que se é, acreditar naquilo que
sopra nos ouvidos de maneira forte e persuasiva, manter-se firme. O poeta
expressa sua personalidade em versos assim: “…O diabo não amassará o meu
pão/pois terá de enfrentar outro tridente em minha mão…” Encantamento puro esse
cotidiano por onde o poeta passeia, inebriado, saudando a palavra, o verbo, a
laranja e o fungo. Aplausos, Salomão, aplausos efusivos!
Isso de observar e
valorizar insetos, larvas e acidentes tais, é mais ou menos como garimpar
riquezas no chão, o olhar voltado para o que passa desapercebido. Papel digno
do poeta auscultar silêncios que são vozes, ritmos que se perdem na pressa das
metrópoles. Falo do poema ”Bom dia”. Em “Festejos do mofo”, Salomão saúda o que
o mundo tem de imundo, desidratado, roído. Um soneto moderno em “Casca de
casulo”. A percepção nítida de declarar que o poeta não se aliena, não enfia a
cabeça no buraco, vê, revê, indigna, vocifera, em um poema singularíssimo. Eis:
“…Por que a minha casa/tem dois metros de altura?/Não tenho a aptidão da
formiga/para habitar dentro do chão…” (“Inaptidão”). Encontro elegância, gênio
e estilo nos versos de “No coração de Terra”, dedicado a Kori Bolívia, assim
como em “Rebrilho”, quando diz: “…E ainda há tempo de cobrir as sementes…/E
ainda há tempo para juntos/vermos o rebrilhar da resina numa folha.” Loucura um
poeta que destila um verbo dessa maneira: “…Vou me integrando como um
camundongo/à toca quente, quando devia ser a antena/à espreita sobre o telhado,
ao sol inclemente… (“Grão seco”). Isso de liberdade conquistada, até pelo submisso
amigo do homem: “…Livra-se de nós um cão, um companheiro/quando arranca a
vedação de uma porta...” (“Abdulrazak Gurnah”). Isso de terra, frutos, junção
de vida e palavra: “…A amora soube amadurecer. Soube a semente achar a
fertilidade com o húmus…” (“Leme nas mãos”). Isso de amoras e bichos da seda,
isso de criatividade e elegância verbal: “…Se não pomos os casulos na bojuda
tina/seremos poupados da organização da seda…” (“A seda”).
Salomão tem a dizer
e diz, com incrível propriedade: “…Tenho de encontrar outro que ria,/o que
acenda o fogo após a alforria…” (“Quando nasci”). Até para falar de sentimentos
o poeta insere a natureza e seus frutos, insetos etc. Feito o que clama: “…Traga-me
cestos amarelos/para eu encher de cavalos azuis/goiabas furadas por lagartas/e
pincéis famintos de verde e vermelho…” (“Casa de bonecas”). Salomão trabalha a
palavra numa modernidade única, original, feito o que observamos em “Cansaço do
ouro” e “Brisa”, numa consciente visão e observação do mundo e suas coisas,
seus tons dourados ou nem tanto. Uma capacidade sem precedentes para falar das
faíscas, fuligens, sujeiras que se misturam aos objetos, conforme o poema “O
vento colhe amoras”. A magia está nisso de venerar os pequenos seres,
embriagar-se com eles, imaginar até (sim, Salomão pode) um coró envolto em anel
torto e sujo sobre a calçada (aqui a imaginação é minha, leitores, feito
alegoria) e encantar dessa forma: “…Quando eu for uma formiga/escaparei de uma
ponta de rua…” (“A paisagem da formiga”). E por falar em madressilvas, a bela
trepadeira que em flor se ilumina, que pode ser cerca viva e esplendorosa, mas
a dos ramos, das folhas, das flores, da paz, não a cerca que limita e esconde.
Assim diz o poeta: “…O que o colibri quer de um cacho de madressilvas/não é o
que o homem quer/com a construção de uma cerca.” (“Destino óbvio do que somos”).
O conceito poético de liberdade: “…Mas ser livre não é dissimular/ser uma
libélula morta/É ser arrastado para ser servido /numa refeição de formigas/ou
desfazer-se vivo na brisa de bálsamo.” (“Rodar onde?”)
O formato do amor é
musical, pelo menos nesses versos de abundante magia: “…O que finda é a vontade
de saber/ou a luz que incide sobre o piano,/que permanece no espaço/com todas
as notas para animar o amor…” (“O amor não finda). E mais ainda, altissonante e
belo: “…Para que os delírios/para que a infâmia!/Entrego-me ao que abraças/ao
que guardas. Aos teus lírios.” (“Enxergo em ti”). Com discreta disciplina
(própria dos que sabem bem escrever), o poeta pasma, poeticamente pasma diante
dos desatinos, dos loucos desalmados. E brada: “…E em mim há urgência de
reclamações vivas,/de afugentar loucos/acampados em nossos palácios./Há
urgência de igarapés,/ de formigueiros e lanternas amigas.” (“Igarapés”). E
esse desfecho honroso, sábio: “…Rastreio quem entra em minha cidade/com uma
lanterna amiga/Não há desfecho, há jornadas.” (“Não há desfecho”).
Empolgo-me tanto
com a poesia de Salomão Sousa que aquilo que deveria ser um texto de
apresentação acabou se transformando em tentativa de ensaio, estudo mais
aprofundado da obra. É que a boa poética faz a gente viajar, sem regras, sem
limites, sem hora para colocar termo. Fui navegando, remando, fui indo. Desse
jeito. Abraço, poeta especialíssimo Salomão Sousa!
Goiânia, setembro de 2023
Apresentação de Wil Prado
SEGUINDO OS PASSOS DO POETA
Na estrada com Salomão.
Conheci Salomão Sousa no início de 1977, no extinto Correio do Planalto, quando ele, no último semestre do curso de Jornalismo, chegava ao jornal para fazer seu estágio, e fora lotado na editoria de polícia, onde eu trabalhava há algum tempo como repórter. Eram anos de chumbo, repressão e censura, mas, jovens e idealistas, achávamos que poderíamos mudar o mundo. E a literatura era a única janela que tínhamos para flertar com essa mudança.
Nosso trabalho de repórteres de polícia não era nada
romântico. Visitar delegacias, locais dos crimes, entrevistar bandidos e
vítimas — uma rotina tenebrosa mesmo para repórteres experientes, que dirá para
“focas”. Contudo havia uma válvula de
escape: “O grito da Cidade.”— espaço que o jornal reservava para crônicas,
aberto a todos os membros da redação. Salomão e eu terminaríamos usurpando a
tal coluninha. Era lá que fugiríamos da bruta realidade dos crimes para dar
vazão à fantasia. E ali Salomão e eu publicamos nossas primeiras prosas
literárias.
Concluído o seu estágio, Salomão, que, desde 1973, era
funcionário da Fundação Educacional do Distrito Federal, mudou para Ministério
da Economia. O Correio do Planalto iria
à falência e eu passara a me virar como freelance. Mas nossa relação de amizade continuaria
através de lançamentos de livros, revistas literárias, encontros de escritores
— e tudo o mais que se referisse à Esquiva Dama. Amizade que nos ligaria para sempre, ainda
que com alguns hiatos, uns largos, outros nem tanto, por conta e culpa dos
calços e percalços da vida.
Sua passagem pela redação fora breve, contudo, dela
Salomão levaria para toda vida a amizade de Archibaldo Figueira, repórter
político e um dos primeiros tradutores de Agatha Christie no país.
Um terceiro amigo — Ronaldo Alexandre — também tirado a
poeta, viria se juntar a nós, formando o trio que, apropriadamente, Salomão
intitularia de “Os três mosqueteiros”. Amizade que seria cultivada entre
encontros e saraus, e que pariria dois números de Esbarros, um folheto artesanal, xerocado e grampeado por nós
mesmos, reunindo poemas de Salomão e Ronaldo aos contos desse escriba.
Trindade, todavia, que não resistiria por muito anos às
agruras literárias: o terceiro
mosqueteiro, mais dotado de juízo do que os outros dois, não demoraria a
abandonar o circuito literário para se tornar funcionário ministerial. No que,
temos que reconhecer, agiu com a mais pura sensatez. Contudo, a amizade entre
os três permanece até os dias de hoje.
Em uma cidade nova e ainda sem pontos culturais definidos — a
Brasília da década de 70 —, descobríamos a Associação Nacional de Escritores
(ANE) — funcionando provisoriamente em uma sobreloja da SQS 415. Lá manteríamos
os primeiros contatos com a intelectualidade local: Almeida Fischer (fundador e
primeiro presidente), Cassiano Nunes, Anderson Braga Horta, Domingos Carvalho da
Silva, Fernando Mendes Viana, Napoleão Valadares, Alan Vigiano, Danilo Gomes, Esmerino
Magalhães Jr. e tantos outros que a memória me rouba.
Outro achado da época foi o Encontro Nacional de Escritores.
Promovido pela Fundação Cultural do
Distrito Federal, anualmente reunia escritores em torno de palestras e debates,
quando eram anunciados os vencedores dos prêmios de poesia, conto e
romance. Ali tivemos a oportunidade de
conhecer celebrados nomes da nossa literatura.
Num desses Encontros iríamos conhecer Inácio de Loyola
Brandão, que nos autografaria o seu premiado Zero, recusado por quatro editoras nacionais, e publicado com
estrondoso sucesso na Itália. Anos depois, sairia no Brasil, infelizmente
censurado, logo em seguida, por “atentado à moral e aos bons costumes”. Nesse
breve encontro, em uma suíte do Hotel Nacional, ele, indignado, anteciparia
para nós parte do discurso que faria logo mais ao receber seu prêmio. Em cima da hora, na azáfama, Loyola se deu
conta de que não havia trazido um paletó. O que fazer? Olhei bem para ele,
tinha mais ou menos o mesmo corpo que eu, calculei. Não tive dúvidas, tirei meu
paletó e emprestei para ele. E assim, os três, atrasados, descemos para o
auditório.
Mas esses Encontros, por vezes polémicos, também tinham o
seu lado glamouroso. E um deles seria a recepção oferecida por Dinah Silveira
de Queiroz, na sua residência, onde teríamos a oportunidade de conhecer a
lendária mansão “A Muralha”, título de um dos seus sagrados romances.
Jorge Amado veio à Brasília lançar seu Tieta do Agreste. Na fila de autógrafos — quase dobrando o
quarteirão —, o poeta, eu e Esbarros 2,
folheto com capa do cartunista Siroba, colega de redação. Não podíamos perder a
oportunidade de empurrar o livreco, ainda que soubéssemos que o festejado
escritor recebia dezenas de livros e manuscritos por onde passava; e aquele
seria apenas mais um a entulhar sua estante, quiçá o cesto de lixo.
Qual não foi a
surpresa ao recebermos, pelo correio, livros do autor com generosas dedicatórias. “Para o poeta Salomão Sousa, admirador da sua
poesia que não é cera — é clama!” “Para Wil Prado, com os votos de um feliz
ano-novo com paz, liberdade e bom trabalho literário, do leitor (e admirador)
dos seus contos publicados em Esbarros 2.
Gostei; realmente!”
Noutra oportunidade, João Antônio, que acabava de lançar Leão de Chácara, veio a Brasília,
convidado pelo diretório acadêmico de uma Universidade local. Durante a
palestra, dele nos aproximamos, tornando-nos amigos, ocasião em que
aproveitamos para convidá-lo a fazer outra palestra na UnB, onde eu estudava à
época e tinha certa ligação com o diretório estudantil. Só que, na empolgação,
esquecemos de alertar ao palestrante sobre o momento conturbado que a
universidade atravessava: protestos contra
o regime, assembleias estudantis, pairava a ameaça de greve geral, a essas
alturas já com todos os acessos bloqueados e cercada por policiais militares e
civis.
Foi nesse clima de guerra que João Antônio, Salomão e eu
penetramos pela ala sul do minhocão, até o anfiteatro onde se realizaria a
palestra. Lembro-me que logo ao chegar ao campus ele estranhou a situação.
Explicamos que não haveria problema, pois tínhamos a autorização do
Departamento, e havíamos nos comprometido a não falar de política. Ele nos
olhou meio incrédulo e desabafou: “Porra, vocês estão me levando para dentro da
toca dos leões!” Contudo não se intimidou; e, para felicidade dos três, a
palestra ocorreu sem maiores contratempos. Teoricamente, o João não era um
escritor engajado, contudo não fugiu às inevitáveis perguntas políticas dos
estudantes — que esse pequeno episódio fique aqui anotado para uso de algum
biógrafo de plantão.
Por competência e mérito, no
Ministério da Economia, com os anos Salomão galgaria os devidos postos até chegar
ao cargo de assessor; ao passo que eu, acomodado no IBGE, subalternamente, me
empenhava em levantar dados estatísticas que, a contragosto do establishment,
revelavam as carências sociais da população brasileira, cada dia mais
acentuadas, embora o ufanismo do regime insistisse em dizer que “Esse é um país
que vai pra frente!”
Contudo, mesmo agora em regime de tempo integral, sempre
achávamos um jeito de contribuir, com matérias literárias, para revistas e
jornais. Eu, como sempre, em navegações de pequena cabotagem, ao passo que ele
já se lançava além-mar, inclusive selecionado pela revista Anto, de Portugal, sob o título de 47 poetas brasileiros.
A essas alturas, Salomão já com vários livros publicados, era
partícipe de importantes antologias regionais e mesmo nacional, como A nova poesia brasileira, selecionada
por Olga Savary e a Poesia goiana do
século XX, organizada por Assis Brasil.
Faço aqui um parêntese para
revelar um episódio à parte. Ora direis: e o que tem isso a ver com o caso? Eu
explico. Pode que talvez sirva de matéria a futuros exegetas do poeta; senão
que pelo menos de consolo a alguma alma solitária.
Era um furioso fim de tarde,
desses que só ousam acontecer em Brasília. Íamos à cata de alguma livraria ou
de uma mesa de bar. (À época, havia uma boa simbiose entre ambos, como foi o
caso da livraria Leitura, do bibliófilo José Salles Neto, onde passamos algumas
tardes de sábado). Ele ia cheio de
planos e poemas, vazando versos dos bolsos; eu, casmurro e cabisbaixo, de veio
e vida vazios. Ele vinha de livro recém-publicado, eu de uma paixão mal
resolvida. De repente, não mais que de repente, como um soluço, larguei a frase
no ar: “Ando no mundo da lua e sem ver estrelas.”. Na hora, ele nada disse. Mas,
dias depois me mostrou um poema intitulado “Roubo dos Versos”: “Estou no mundo da lua/e sem ver estrelas.
//Roubo estes versos/ de alguém que os disse/na rua. /Roubo como se rouba/os
olhares da moça/debaixo dos braços do moço. //Ficarão para serem teus, /para
com eles/recolher estrelas/de ti perdidas.”.
O
que mais dizer de um cara que flagra a alma da gente, rouba nossas inquietações
mais íntimas e cristaliza tudo isso num poema tão singelo?!
Só posso acrescentar que, entre encontros e desencontros,
percorremos juntos um dos trechos mais belos da nossa existência, até que a
“força” da vida — como ela sempre faz — se encarregou de afastar-nos, brandindo
as armas da sobrevivência: trabalho, casa, família, obrigações à torto e a
direito! E cada um seguiu o seu caminho. Ele, contudo, embora encarcerado em
funções burocráticas, permaneceria fiel ao seu mister poético, participando de
lançamentos, palestras e lançando seus próprios livros, colhendo admiração dos
seus pares e o respeito dos críticos; enquanto eu me dispersava por outros
desvãos, nada literários, ainda que nunca perdesse o fito da literatura.
Com
a licença do poeta (pois bem sei que não estou aqui para isso!), mas termino
por meter o bedelho aonde não fui chamado. Prestei-me a dar mero depoimento
sobre nossa ciranda literária — já que amigos fomos de juventude literária — e
agora extrapolo, invadindo gleba que não me diz respeito, posto que não sou
poeta nem crítico nem nada. É que muito toucou-me a leitura do denso manuscrito,
e não pude conter-me. Não tenho qualquer
dúvida de que é o mais ambicioso e abrangente dos livros do poeta.
Em uma linguagem estranhamente trabalhada, com metáforas
invertidas (pervertidas?), a biografia poética resgata o que viu/viveu, mas
também o que não viveu nas suas lembranças interioranas pelos charcos e calvos
dos rios da sua infância. Mas também é a biografia do imaginário, do que nunca
existiu, mas existe no memorial da imaginação.
No Evereste da carreira literária de Salomão Sousa, olho
para cima um tanto pasmo. Aqui está o homem-poeta, com toda a sua carga de
emoção e espanto. E, mudo, só posso dizer que é com imenso júbilo que recebo
esse presente: o privilégio de puder ajuntar minhas palavras superficiais e
passageiras a análises profundas e duradouras de críticos abalizados.
II
O REFÚGIO DO GUERREIRO
Agora quero falar da casa do poeta. Quem já teve o
privilégio — entre os quais me incluo — de frequentá-la há de concordar comigo
que ela merece um capítulo à parte na sua biografia.
Começo destacando a sua emblemática
proximidade com a linha do trem, dando-lhe um romântico ar de casa do interior
(em plena capital da república), e favorecida ainda por ser a última do
conjunto, que acaba em uma área verde querendo se fazer de bosque. É aí que o
poeta — saudoso das suas remotas origens rurais, talvez — ultimamente tem
retomado o contato com as pequenas coisas da natureza, aguçando seu faro
botânico-biológico. Já o ouvi por mais
de uma vez contar da sua proximidade com pássaros — sabiás, sanhaços, joões-de-barro
—, borboletas, libélulas e outros insetos, minunciosamente investigados pela
sua curiosidade poética. Influência de Manoel de Barros, um dos seus poetas
prediletos? Talvez.
Agora vamos deixar o bucolismo da paisagem e adentrar à casa
propriamente dita.
Desde que lá estive pela primeira vez, que muito me
impressionou a quantidade de livros lá armazenados. Uma verdadeira biblioteca
particular. É sabido que escritores gostam de livros — faz parte da nossa
formação — e pude constatar isso na casa de muitos que conheci. Mas nada
semelhante ao que encontraria na casa de Salomão. São milhares de volumes a transbordarem
das estantes, escalando paredes, invadindo desvãos de escadas, garagem, mesas e
sofás — como as águas de um rio a transbordar por todos os lados. E a auto
pergunta era insopitável: porque Salomão compra tantos livros, se tem
consciência de que é humanamente impossível lê-los todos?
Essa resposta eu só encontraria muitos anos depois, ao ler um
dos seus mais belos e pungentes depoimento — “Reflexões do autor”, in Safra quebrada: “Até perto dos quinze
anos, não tive outro livro entre as mãos além da pequena cartilha que meu pai
buscou na cidade para que eu fosse alfabetizado...”. A atitude de se cercar do maior número de
livros possível não seria uma forma de compensar a carência deles na
infância-adolescência?
Deixo a questão para exegetas e analistas, cuido aqui apenas
de tentar recriar o clima acolhedor e aconchegante daquela que se tornaria um
ponto de encontro. Lá o poeta, hospitaleiro e aglutinador, reuniria os amigos
não apenas para falar sobre livros e literatura, mas para literalmente compartilhar
a vida — e tudo isso, é bom que se diga, regado a umas boas doses de vinho ou
cuba-livre, que também ninguém é de ferro, né? Para tanto, claro, ele sempre
contou com a cumplicidade da sua companheira Tita, às vezes um tanto distante
da ebulição vocabular de excitados convivas, mas sempre serena e atenta
anfitriã.
Nessa casa, eu teria a
fortuna de conhecer interessantes personagens dos meios literários, como os
poetas José Godoy Garcia, João Carlos Taveira, Nilton Maciel, Esmerino
Magalhães Júnior, e, mais recentemente, o crítico de cinema e memorialista Herodes
Cézar e o professor e poeta Antônio Miranda, amigos de sala, cozinha e
biblioteca. Velhas amizades que o poeta — embora sempre angariando novas —, tem
tido o cuidado de preservar. “As amizades são grandes ramas que temos que
cuidar com claridade para impedir que parasitas depositem seus danos sobre
elas”. É uma bela metáfora que ele, ao longo de toda a vida, vem cuidando de
regar.
Contudo, é bom que se registre que essa pacata casa não foi palco
apenas de embates culturais. Também seria o picadeiro de um importante encontro
político. Vou explicar isso melhor. Embora
não seja um homem partidário (ainda que sua poesia nunca tenha deixado de ser
engajada, no bom sentido da palavra), por um acaso do destino Salomão iria se
ligar à Cristovam Buarque.
Sucede que o poeta estava organizando Conto Candango e o contista Cristovam fora indicado por um amigo
comum para participar da antologia. (Anos depois, já reconhecido como político
e escritor, Cristovam diria que Salomão foi o seu primeiro editor). Desse
contato brotaria uma relação de amizade que se estenderia além da literatura,
entranhando-se mesmo pela política, a ponto de podermos afirmar que foi na casa
do poeta que ele realizaria uma das primeiras reuniões de sua campanha para
governador do Distrito Federal. Ele, que
foi um dos primeiros a acreditar no seu potencial político de Cristovam, reuniu
vizinhos, parentes e amigos para debate com candidato.
Não se assustem. Para a
felicidade nossa, e de todos os seus amigos e admiradores, Salomão não se
deixou contaminar pelo vírus da política. Continuou a laborar seus poemas,
dando-nos, de tempos em tempos, os belos volumes que hoje fazem parte da
história da poesia brasiliense. Haja visto a sua inclusão — em ensaio crítico de
Alessandro Eloy Braga, divulgado pela internet e com previsão de edição em 2021
— entre os mais significativos autores da cidade.
Poeta do seu tempo, Salomão esteve sempre à crista do novo,
e, com o advento da internet, foi um dos primeiros escritores a criar seu
próprio blog. “Safra-quebrada”.
Para finalizar. Ainda que os
versos não estejam à altura, é com eles que faço minha derradeira homenagem:
CANTARES A UM ARTESÃO
Para Salomão Sousa
Com as ferramentas da intuição
e a argila do dia-a-dia,
vais moldando a tua poesia.
Como o padeiro amassando o pão,
as palavras vão brotando
uma a uma das tuas mãos.
Artesão de matéria indefinida,
Sopras no barro sem formas
o fôlego infindo da vida.
Uma
pitada de angústia,
uma
gota de solidão:
plasma o orvalho em canção.
Sabedoria de Salomão,
teus
salmos transcendem à matéria:
a poesia — é a tua religião.
Carta do poeta Valdivino Braz
Caro Salomão Sousa
Que bom falar com você!
Auguro-lhe saúde e paz interior, se ela nos seja possível após o caótico
alvoroço dos quadrúpedes que, volta e meia, assolam o solo em que pisam, e a
poeira dos escombros, com suas infectas partículas, ainda mal se abaixou ao
chão sob o ar insalubre que respiramos.
J´Acuse
recebimento, na recém-sexta-feira do dia sexto deste agosto em curso, de exemplares
dos seus dois novos livros: Certezas para
as madressilvas e Poesia e alteridade,
endereçados a mim, extensivamente ao meu dileto amigo Delermando Vieira; ele e
eu que compomos um “duo”, como você diz, e diz a bem da verdade, e vou aqui
rimando com amizade. Delermando anda quieto (e quieto ando eu); há meses que
não o tenho visto; entrei em contato para ele vir pegar os exemplares que você
autografou para ele.
Logo peguei a ler e terminei
de ler suas emblemáticas madressilvas, alusivamente diretas para serem (redunda
dizer) alegóricas. Um refino poético, como lhe é próprio ao estilo. Apontam-lhe
influências de João Cabral, Drummond, entre outros; a mais captamos alguma
ressonância formal de Alfred Tennyson (pelo qual você nutre manifesta simpatia,
pois não?) e de Eugene Montale (Ossos de
sépia), com um certo hermetismo, finura formal e poeticamente imagética. Ou
não?
Do ódio aquartelado
(bem-entendido) para as ruas da turbamulta enceguecida em alvoroço, resulta uma
poesia de contraponto a tudo que nos afeta, direta e coletivamente, em face do
quê, um poema não deixa de ser uma forma de ato público. É quando as palavras
se fazem iluminuras imagéticas pelo som, pela pictórica tonalidade e epifania
de seus desenhos, no sentido de entendimento ou compreensão da essência de algo
pertinentemente implícito. Inerentemente, in
essentia, a oportuna pronúncia do sentimento ante as explícitas verdades então
reveladas em seu maldito reduto.
Prezado Salomão, em seguida,
e, claro, por referir-se a Goiás, logo li seu ensaio sobre quando a poesia
goiana houve de dar combate aos “tumores” do “matadouro do dia”, alusivamente
aos “anos de chumbo” em nosso escolado país de sofrimentos de ordem política.
Faltou, no passado, da parte de doutos estudiosos (se é que isso interessava
tanto quanto louvar a vanguarda estética do GEN); uma visada mais alentada com atinência
à vertente sociopolítica nos versos de poetas locais, a exemplo mesmo, dentre
outros, de um Brasigóis Felício, Delermando Vieira, Tagore Biram (com
influências de Maiakóvski e Bertolt Brecht, além de Neruda, os três sempre
referidos por ele). De minha parte, bem antes de um “simbolismo tardio e
demoníaco” e dos meus avanços com a metalinguagem, vinha eu com As faces da faca, A palavra por desígnio e O
animal político de Aristóteles, marcas primeiras do explícito viés sociopolítico
em meus escritos.
Quando o editor José
(Zezinho) Oriente leu os originais do meu livro As faces da faca, me disse que teria que “levá-lo à Censura”, então
obrigatória, imposta ao país por repressora impostura de caserna e coturno. Eu
disse ao Zezinho que, se o livro fosse ao Censor, não seria publicado (senão
coisa pior), e assim ele não ganharia meu dinheiro pela edição, e eu não teria
meu livrinho impresso. Argumentei que, se ele se arriscasse comigo,
publicaríamos o livro; ele então ponderou e publicou, e não aconteceu nada de
mal.
No mais, caro amigo
Salomão, devo continuar lendo seus ensaios em Poesia e alteridade, e/ou, digamos assim, alteridade da poesia em
questão; o “eu-individual” em relação ao outro. Em seu comentário sobre um
poema de minha autoria, vem com destaque em itálico a palavra cuzido (que foi um cochilo meu, quando o
certo é cozido, e do qual me dei
conta na época, mas então o livro já saíra publicado --- lamentáveis cochilos. Na
leitura, observo que, na página 59, se bem entendi (ou entendi mal?), você
comenta “tumores” como sendo de um verso do poema “Matadouro”, do Brasigóis, e
o verso é do poema “Prólogo”, de Tagore Biram: “eu viro as costas e não me
importo / e abro as portas dos meus tumores.”
Eu aqui vou indo bem, 82
anos, apenas um pouco pênsil no equilíbrio, feito a torre de Pisa. Há meses que
nem vou até a UBE; ando às voltas com a saúde, vezes várias indo ao médico, e
já estive em três UTIs; na primeira delas, com inflamação generalizada, quase
me fui, e tive até alucinações; cheguei a pensar que no Céu deviam estar
precisando de um auxiliar de porteiro, lá com São Pedro. Mas não fui.
Agora pega aí o pássaro
do meu fraterno abraço, extensivo à sua família.
Valdivino Braz (ainda).
Goiânia, 09/9/2024.
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