Sônia Elizabeth
Um poeta que inicia seu livro com versos assim: “Enganou-se quem partiu/para legar-me ao abandono. /Uma caravana de formigas/entra por minha porta” é merecedor do cheiro bom das folhas de eucalipto sacudindo perfume pelo seu rosto. Ou então da brisa suave resvalando por entre os capins, ainda que insetos voadores procurem abrigos na garagem comum de qualquer casa, em especial a casa do vate, ficando ali inertes, à espera do último suspiro.
A poesia de Salomão
Sousa, nesse livro Certezas para as madressilvas, é um oceano de
procuras e achados, descobertas, constatações. Nunca se desprega da aba do
cotidiano, o existente, experimentado, visto e palpável. Então, muitas vezes
beira a dureza, justamente porque os versos são reais e batem, martelam o
calcário da vida, porém abertos a preocupação constante com os bichos que o
cercam, o seu habitat: “…Não salvei o meu quintal, os ovos de meus pássaros…” E
a estilística dos quintais: “…Folguemos com o tema de amadurecer amora…” (“O
tema de amadurecer a amor”). Imagens bonitas, a observação dos frutos, suas
entranhas: “…ou cajás grátis/só porque são ácidos e de entremeadas nervuras…” (“Dourada
sineta”). As dores que naturalmente surgem das incertezas, ferindo corpo e
alma. É preciso remédio: “…O pote de unguento posta-se sobre a mesa/para quando
minguarem as certezas… (“Rumos de Siracusa”). Salomão recria a linguagem com
inteligência solta e livre, um toque natural em tudo: “…Há a obediência da
terra/quando acertamos a charrua,/experiência antiga de revolver,/talos
convenientes, espigas…” (“Ares dos Césares”). Versos bem elaborados, ricos,
ouro puro.
A vida é calabouço,
regras, principiados. Opaca luz onde o martírio se impõe, a letra morta: “…não
fez a contagem, quem implantou a cerca/não sabia como deixar uma madeira
solta/e no instante da fuga aprisionou-se…” ou “…não há como negar o DNA da
bala/se a lataria prova, se o sangue coagula/e a medula imobiliza a fala e a
retina…” (“A mútua negativa”). “Oratio fascio” é um poema magnífico,
antológico, evocativo. Firme propósito de ser o que se é, acreditar naquilo que
sopra nos ouvidos de maneira forte e persuasiva, manter-se firme. O poeta
expressa sua personalidade em versos assim: “…O diabo não amassará o meu
pão/pois terá de enfrentar outro tridente em minha mão…” Encantamento puro esse
cotidiano por onde o poeta passeia, inebriado, saudando a palavra, o verbo, a
laranja e o fungo. Aplausos, Salomão, aplausos efusivos!
Isso de observar e
valorizar insetos, larvas e acidentes tais, é mais ou menos como garimpar
riquezas no chão, o olhar voltado para o que passa desapercebido. Papel digno
do poeta auscultar silêncios que são vozes, ritmos que se perdem na pressa das
metrópoles. Falo do poema ”Bom dia”. Em “Festejos do mofo”, Salomão saúda o que
o mundo tem de imundo, desidratado, roído. Um soneto moderno em “Casca de
casulo”. A percepção nítida de declarar que o poeta não se aliena, não enfia a
cabeça no buraco, vê, revê, indigna, vocifera, em um poema singularíssimo. Eis:
“…Por que a minha casa/tem dois metros de altura?/Não tenho a aptidão da
formiga/para habitar dentro do chão…” (“Inaptidão”). Encontro elegância, gênio
e estilo nos versos de “No coração de Terra”, dedicado a Kori Bolívia, assim
como em “Rebrilho”, quando diz: “…E ainda há tempo de cobrir as sementes…/E
ainda há tempo para juntos/vermos o rebrilhar da resina numa folha.” Loucura um
poeta que destila um verbo dessa maneira: “…Vou me integrando como um
camundongo/à toca quente, quando devia ser a antena/à espreita sobre o telhado,
ao sol inclemente… (“Grão seco”). Isso de liberdade conquistada, até pelo submisso
amigo do homem: “…Livra-se de nós um cão, um companheiro/quando arranca a
vedação de uma porta...” (“Abdulrazak Gurnah”). Isso de terra, frutos, junção
de vida e palavra: “…A amora soube amadurecer. Soube a semente achar a
fertilidade com o húmus…” (“Leme nas mãos”). Isso de amoras e bichos da seda,
isso de criatividade e elegância verbal: “…Se não pomos os casulos na bojuda
tina/seremos poupados da organização da seda…” (“A seda”).
Salomão tem a dizer
e diz, com incrível propriedade: “…Tenho de encontrar outro que ria,/o que
acenda o fogo após a alforria…” (“Quando nasci”). Até para falar de sentimentos
o poeta insere a natureza e seus frutos, insetos etc. Feito o que clama: “…Traga-me
cestos amarelos/para eu encher de cavalos azuis/goiabas furadas por lagartas/e
pincéis famintos de verde e vermelho…” (“Casa de bonecas”). Salomão trabalha a
palavra numa modernidade única, original, feito o que observamos em “Cansaço do
ouro” e “Brisa”, numa consciente visão e observação do mundo e suas coisas,
seus tons dourados ou nem tanto. Uma capacidade sem precedentes para falar das
faíscas, fuligens, sujeiras que se misturam aos objetos, conforme o poema “O
vento colhe amoras”. A magia está nisso de venerar os pequenos seres,
embriagar-se com eles, imaginar até (sim, Salomão pode) um coró envolto em anel
torto e sujo sobre a calçada (aqui a imaginação é minha, leitores, feito
alegoria) e encantar dessa forma: “…Quando eu for uma formiga/escaparei de uma
ponta de rua…” (“A paisagem da formiga”). E por falar em madressilvas, a bela
trepadeira que em flor se ilumina, que pode ser cerca viva e esplendorosa, mas
a dos ramos, das folhas, das flores, da paz, não a cerca que limita e esconde.
Assim diz o poeta: “…O que o colibri quer de um cacho de madressilvas/não é o
que o homem quer/com a construção de uma cerca.” (“Destino óbvio do que somos”).
O conceito poético de liberdade: “…Mas ser livre não é dissimular/ser uma
libélula morta/É ser arrastado para ser servido /numa refeição de formigas/ou
desfazer-se vivo na brisa de bálsamo.” (“Rodar onde?”)
O formato do amor é
musical, pelo menos nesses versos de abundante magia: “…O que finda é a vontade
de saber/ou a luz que incide sobre o piano,/que permanece no espaço/com todas
as notas para animar o amor…” (“O amor não finda). E mais ainda, altissonante e
belo: “…Para que os delírios/para que a infâmia!/Entrego-me ao que abraças/ao
que guardas. Aos teus lírios.” (“Enxergo em ti”). Com discreta disciplina
(própria dos que sabem bem escrever), o poeta pasma, poeticamente pasma diante
dos desatinos, dos loucos desalmados. E brada: “…E em mim há urgência de
reclamações vivas,/de afugentar loucos/acampados em nossos palácios./Há
urgência de igarapés,/ de formigueiros e lanternas amigas.” (“Igarapés”). E
esse desfecho honroso, sábio: “…Rastreio quem entra em minha cidade/com uma
lanterna amiga/Não há desfecho, há jornadas.” (“Não há desfecho”).
Empolgo-me tanto
com a poesia de Salomão Sousa que aquilo que deveria ser um texto de
apresentação acabou se transformando em tentativa de ensaio, estudo mais
aprofundado da obra. É que a boa poética faz a gente viajar, sem regras, sem
limites, sem hora para colocar termo. Fui navegando, remando, fui indo. Desse
jeito. Abraço, poeta especialíssimo Salomão Sousa!
Goiânia, setembro de 2023
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