quinta-feira, 5 de maio de 2022

A tirania dos algoritimos


Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A expressão “qualidade em educação”, no marco dos sistemas educacionais, admite uma variedade de interpretações dependendo da concepção que se tenha sobre o que esses sistemas devem proporcionar à sociedade. Uma educação de qualidade pode significar tanto aquela que possibilita o domínio eficaz dos conteúdos previstos nos planos curriculares; como aquela que possibilita a aquisição de uma cultura científica ou literária; ou aquela que desenvolve a máxima capacidade técnica para servir ao sistema produtivo; ou, ainda, aquela que promove o espírito crítico e fortalece o compromisso para transformar a realidade social, por exemplo. Por outro lado, a expressão “qualidade educacional” tem sido utilizada para referenciar a eficiência, a eficácia, a efetividade e a relevância do setor educacional, e, na maioria das vezes, dos sistemas educacionais e de suas instituições. 

Sendo um tema abrangente em sentidos, destacar-se-ão duas vias que têm orientado a discussão acerca da qualidade da educação. A primeira está voltada para a qualidade do conteúdo da escolarização, e a segunda para a elevação de múltiplos fatores que implicariam uma melhor dinâmica da educação na sociedade como um todo. No enfrentamento dos problemas educacionais, em busca da melhoria da qualidade, são raras as situações em que a escola tem sido considerada a unidade fundamental na relação entre as diversas instâncias do poder público e a rede de ensino. Concebe-se a qualidade da educação como o alcance do desenvolvimento esperado do processo educativo, havendo maior qualidade na escola que cumpre sua função de socialização de conhecimentos, ampliação da cultura e aprimoramento da formação crítica. A educação de qualidade, nessa visão, estaria ligada ao alcance da emancipação dos sujeitos no sentido de aprimorarem a reflexão crítica e contribuírem na transformação para uma sociedade que supere as desigualdades.

Dentro de 10 a 20 anos, cerca de 90% das ocupações que temos hoje vão ser substituídas por robôs ou máquinas. Já está ocorrendo com força na medicina, na engenharia, na construção mecânica. Certamente, a instrução, em determinados assuntos e disciplinas, pode ser satisfatoriamente substituída por máquinas. Educação não é simplesmente passar informação. O mais pobre dos computadores faz isso melhor que o melhor dos professores. Um leitor competente é aquele capaz de ler além do que está escrito, ele lê as entrelinhas, além de fazer relações com outros textos lidos e ser capaz de falar sobre eles sem desmerecer a importância de discernir um fato de uma opinião. Acredito que formar esse sujeito é uma das entregas mais valiosas da escola. A cada dia percebemos a necessidade de termos (e sermos) bons leitores. 

Não à toa, segundo o professor Muniz Sodré, autor do livro A sociedade incivil: mídia, liberalismo e finanças (2021), está reservado um outro lugar à educação, a saber: “a formação cívica, ao mesmo tempo psicológica e ética. [...] A educação é um nome da transformação de um processo radical de iniciação. [...] Iniciação é como uma conversão ou um batismo: a entrada numa câmara-portal e o renascimento do indivíduo para a vida social e coletiva. A iniciação é pessoal – ela precisa de gente – e é libidinal. Não consigo conceber uma educação que não tenha uma reinterpretação do laço libidinal entre pais e filhos, filhos e pais”. 

Enquanto as pessoas entram numa faculdade para ter uma profissão e arrumar emprego, o próprio trabalho está sendo velozmente desvalorizado pelo advento das máquinas e robôs. “Não acho que a educação esteja estruturalmente acoplada ao trabalho. Ela está acoplada à formação psicológica, ética, propriamente humana”, defende Sodré. Mesmo num mundo regido por algoritmos, há uma virada afetiva na relação do saber com o indivíduo e seu corpo, com o orgânico, com as interações que o saber promove. O empenho histórico das ciências é entender e produzir grandes ideias sobre as transformações do mundo. É preciso voltar a pensar. A televisão brasileira levou 50 anos para habituar o povo à banalidade, à vulgaridade e ao grotesco. Isso é complementado hoje pelas redes sociais. Individualmente a internet é boa, claro. Do ponto de vista público e social, elas são uma tragédia.

Como bem assevera o jornalista e escritor Salomão Sousa, em Bifurcações (2022): “por mais que os algoritmos coletem informações sobre as atividades dos internautas, esses dados são insuficientes ou falsos para traçar um indicativo real do comportamento social e da personalidade do indivíduo. Aquilo que escondemos de nós mesmos e do público nós não enviamos para a rede. Manipulamos nossas fotografias e aspectos de nossa personalidade para apresentação de uma imagem que possibilite o aumento de nossa credibilidade dentro do grupo ao qual pertencemos e mantemos aliança, independente do quanto maléfico possa ser o seu comportamento. Vivemos em bolhas grupais, com menosprezo a todos que estiverem fora delas, sejam eles crianças, parentes, idosos e autoridades. O que temos de pior guardamos a sete chaves em nosso inconsciente”. 

Um olhar mais detido sobre a tirania dos algoritmos pode ajudar a entender melhor os motivos pelos quais ainda continuamos reproduzindo comportamentos discriminatórios. Nesse contexto, uma tradição autoritária se agiganta com a proliferação de “indivíduos bombas”, adverte Salomão Sousa. É necessário, portanto, que não naturalizemos os golpes cotidianos da tecnocracia. 


* Professor nas Faculdades Promove de Sete Lagoas (2005-2009), Fortium (2013) e JK (2013-2020). Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários