domingo, 27 de fevereiro de 2022

Sônia Elizabeth

 Salomão Sousa,  poeta incrível, de linguagem rara, preciosa, sem facilidades, sem comodismos. Mais uma vez usufrui o prazer de ler uma obra desse autor tão apaixonado pela poesia, a ponto de desnudá-la com carinho, competência e altruísmo. Seu verbo, embora soe cru, áspero (aos menos avisados) é de uma simbologia e força que merece todos os nossos aplausos e reconhecimentos. E digo, sem pestanejar: é um dos poetas que mais gosto de ler no meu cotidiano. Em anotação de papel colocada no inicio do livro, avulsa, Salomão já nos adverte (e isso constatamos na leitura de cada poema) que “Trata-se do meu livro mais pessoal, mais íntimo dos percursos de minha vida. Os poemas recuperam traços da memória e das observações instantâneas do que emergia à beira de minhas ocupações. O que me apodrece é o que me recupera, é o que salva a lembrança...” Penso que o poeta em evidência deve habitar bem próximo do meio ambiente, matas etc já que sempre em suas postagens refere-se aos pequenos insetos que adentram sua casa, como hospedeiros, já no fim da existência, assim como caminha fotografando tudo aquilo que é belo e pequeno na Mãe Natureza, o que passa muitas vezes desapercebido aos olhos humanos que não enxergam a essência das coisas. Ou seja, Salomão Sousa é uma espécie de Manoel de Barros nas searas de Goiás.


Encontro uma “ressaca de mundos” no poema Biografia do natimorto, assim como curvo-me diante da constatação de misérias e morticínios em Biografia do jirau em dois tempos, embevecida com versos desse nível: “...O inseto não é insone e para eclodir o parasita sabe quando./Sabe quando há água e quando há sangue./A criança é uma vitória contra o aborto...”(pg.18). E surto, no bom sentido, claro, com tão rica retórica: “...Um homem/não é um prego para estar quieto/fixo num tarugo, para deteriorar/na ferrugem...” (Biografia do quarto seguida de algumas adjacências -pg.20).  E, com sapiência, nos diz: “...Quem arrasta a estrada para o lodaçal/não inventa outros jeitos de sair do charco...”(Biografia da estrada – pg. 27). E deslinda o corpo, essa geografia marítima que temos como invólucro: “Pertence ao corpo mover-se sob/nossos pensamentos, ordens que lhe atribuímos/sem consultar a fruição do sangue...”(Biografia do corpo – pg. 30). Uma verdadeira obra prima, leitores, o poema Biografia da bacia antes de ser floreira (pg. 34), bem escrito, coordenado, inspirado e suado. Os poemas de Salomão Sousa trazem aconchego, passado, vida vivida e relembrada, remontando presenças, pretéritos. Salomão não é o viajante pleno, estrangeiro, mas canta sua aldeia colocando nela todo o universo. Isso é bonito, salutar. Gosto disso. Tudo que disse está,  por exemplo, em Biografia da travessia do arco-íris(pg.38), belíssimo, assim como na  singeleza objetiva de Biografia do balcão, onde é sentimento: “...Quem limpa o balcão aprende o que é a janela,/o que são os seios a repousarem no peitoril...”(pg.39). Como não destacar a grandiosidade de um poema como A Biografia de Jeroni (pg.49), assim como a Biografia da avó índia: “...Ter uma avó índia/é ter um corpo ao qual assemelhar-se/e também mãos a encher uma despensa...”(pg. 53). Louvo a Biografia da cidade visível (pg.55), e descubro a impotência humana diante da grandeza da natureza, assim: “...A romãzeira enfia um galho ao solo/ e desse caule se renasce./ E não consigo esse reverdecer;/essa sucessão de frutos...”( pg.60). E a pepita de ouro em forma de verso: “...A flor não dispara o projétil.”(Biografia das parcelas – pg. 82). Isso de ir contra a maré, de ser sublime, humanamente racional na racionalidade de ser humano: “...Quem incendeia pode estar contrariado/com nosso facho/nossa aceitação do pássaro...” (Intervalo para o encaixe – pg. 96).

Como o heterônimo Alberto Caeiro, de Fernando Pessoa, Salomão Sousa ama a natureza e todos os seus elementos, mas sabendo que ela é o que é e o que podemos ver dela, sem invenções ou romantismos demasiados. É irmão das plantas, dos insetos, mas no simbolismo deles, nas estruturas, veias, sangues, dejetos, existência, enfim. Nada quer mudar e nem idealizar. Muitíssimo válido. A arte da capa, de Carlos Alberto, tem uma velha ferradura no meio de uma espécie de lixo ou amontoados de coisas inúteis (úteis). A orelha tem assinatura de Alexandra Vieira de Almeida e Wil Prado. Uma boa fortuna crítica no final e selo da Gráfica Serafim. Reitero que Salomão Sousa é um dos grandes poetas que leio e releio. E a cada releitura novas descobertas. Nada engessado por aqui.

Sônia Elizabeth (poeta e prosadora)

Nota de Ricardo Alfaya

Oi, Salomão,


Chegou hoje à tarde seu Vagem de Vidro.  É uma obra densa, complexa, de estrutura singular.  Um livro de poesia de fato diferente.  Vc realiza uma colagem de textos e imagens numa velocidade vertiginosa, explorando inúmeros efeitos surrealistas, a começar pelo título; a quebra ou mesmo eliminação da pontuação formal acarreta por vezes a sensação de estarmos diante de um hipertexto – por sinal, a influência da Internet no seu fazer literário se evidencia em vários momentos.  Alguns poemas marcaram-me mais, como o que fala em Ulisses.  Destaco também “E se todos nós  decidíssemos pela ausência?” -  Esse poema, aliás, caracteriza uma das tendências que percebi em seu estilo: a criação de uma espécie de universo à parte, totalmente feito de palavras (signos), em que tudo é possível.  Algum dos seus apreciadores notou, com propriedade, a presença de um tom um tanto solene, grandioso, em seu discurso; por exemplo, no poema que começa por “A palavra definitiva”, há algo de bíblico no discurso; e aquela história de “corpo que repartes” evoca a passagem bíblica mais conhecida do antigo Salomão – só que, no seu poema, quem entra em cena é Prometeu; a parte do corpo a sacrificar não é o filho, mas o heroico fígado.  Enfim, é uma poesia personalíssima, muito instigante.  Difícil pretender esgotar a riqueza de seus significados e possibilidades com um único e breve comentário.  Porém, fica aqui o registro, não apenas do recebimento do livro, mas também do prazer que essa primeira leitura me proporcionou.  Parabéns.


Um grande abc,


Ricardo Alfaya

Resenha de Gerson Valle

O poeta Salomão Sousa é um dos marcos literários da capital federal. Sua poesia possui uma originalidade marcante. Neste ano em que se comemoram 100 anos da Semana de Arte Moderna, que quebrou os cânones do então parnasianismo, Salomão Sousa merece um exame melhor de sua obra, quando se constata a liberdade do verso encaminhá-lo ao mesmo tempo que para metáforas e outras figuras como para a narrativa ou reflexão mais encontradiças na prosa. Mas, que nele ganham a graça de uma espontaneidade que traz em si o diferencial poético numa forma em nada tradicional. 

Neste ano de 2022, Salomão Sousa publicou um livro em que apresenta sua redação caminhante para várias direções entre a poesia e a prosa, “Bifurcações – memória, resistência e leitura”, Baú do Autor, Brasília. Há poemas em várias páginas, como há artigos, resenhas literárias, crônicas e mesmo ensaios. Mas, dentro de seu estilo de poesia de destacada liberdade e fruição lírica, os textos não expressamente poéticos deles não destoam na continuidade da leitura, dando-lhe, ao contrário, uma benfazeja impressão de repouso, para logo prosseguir nos raciocínios e observações várias em prosa. Tal como um míni-poema-em-prosa que encabeça uma página solitariamente, e que parece referir-se à própria concepção de obra: “Nunca perdemos nada, simplesmente passamos para outra realidade, com experiências adversas aos nossos desejos. Talvez o trem tenha entrado na bifurcação errada.”
As composições passeiam entre observações personalíssimas sobre o “algoritmo”, por exemplo, “Acabar com o xingamento ajuda a Civilização”, “Processo crítico em tempos de legalização da mentira”, neste último já se aproximando de posicionamentos políticos como em “O que é um fascista?”  onde perpassa por obras de, entre outros, George Orwell, Hanna Arendt, Theodor W. Adorno, “Exercícios para exorcizar o autoritarismo”, com afirmativas como “Sempre que alguém insulta, vitupera, ameaça, xinga e chuta ou se julga dono de toda cognição, deixa em dúvida se não esconde uma cauda sobre as vestes”. Em “Para não chocarmos com o fracasso” nos coloca diante da crise política observando que “O mundo está degradante por irmos desaprendendo a amar, pois falar em perda do humanismo não é suficiente”.
Memorável é o artigo “Legado de resistência de Cecília Meireles”, que deveria ser divulgado largamente com o fim de propagar a vida e obra da grande poetisa e educadora. Apresenta a colaboração jornalística perseguida no Estado Novo, junto ao trabalho desenvolvido com o educador Anízio Teixeira. Suas viagens, seu conhecimento de línguas que a aproximou da literatura inglesa, francesa, italiana, espanhola, alemã, russa, hebraica e da escrita nos dialetos do grupo indo-irânico, traduzindo Rilke, Virginia Woolf, Lorca, Tagore, Maeterlinck, Anouilh, Pushkin, bem como, em 3 volumes, “As mil e uma noites”. Enfim, cito apenas tais detalhes para aguçar a curiosidade, havendo muito mais informações e reflexões que necessitam sua leitura. 
Outro poeta modernista também apresentado em várias de suas facetas é Manuel Bandeira, no texto “Muros”, que foi o discurso de posse de Salomão Sousa na Academia de Letras do Brasil.
Por todas as questões aqui levantadas, concluo por sugerir a leitura do livro em pauta, como dos mais destacáveis lançamentos do início deste ano de 2022.