quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Solidade Lima

O ESPECTRO DA DÚVIDA

Salomão Sousa

Solidade Lima, com este livro As lâminas do tarô e os 12 trabalhos de Hércules, percorre com os mesmos passos de T. S. Eliot o caminho para o Modernismo, só que num percurso inverso, visando se distanciar do excesso de dissolução e do cansaço de excesso de modernidade. Como o bardo norte-americano naturalizado inglês, vale-se de experiências místicas, do recurso de validar o Simbolismo, da retomada da forma e do verso fixos, da mesma raiz do Tarô, em tons góticos –, sem a preocupação de desconstruir instituições ou rebelar-se contra as idiossincrasias de sua época, mas para afirmação de que todo formato de poesia deve conter alguma participação crítica sobre a presença do homem numa dada realidade. Só que a realidade entranhada na poesia de Solidade Lima não é aquela que explicitamente se mostra enquanto paisagem ou ambiente de ação ou clausura. A realidade por ele arquitetada praticamente se erige com os materiais da poesia clássica, e assim se edificaria se não estivesse despojada do Idealismo.
Numa contemporaneidade em que há o predomínio da poesia de invenção, alcançá-la se faz com maior sucesso pelo meio do Sincretismo e do Surrealismo. Em algumas regiões da América Latina, o Sincretismo é milenar e aí a poesia de invenção melhor se dissemina, pois há maior diversidade de elementos míticos nacionais à disposição do poeta. Destaque específico para o México de Victor Sosa. No entanto, outras ferramentas sempre estiveram disponíveis para o criador. Solidade Lima – independente de sua opção pela forma fixa neste livro, após publicar três outros em verso livre; bem como de elencar sonetos avulsos na terceira parte, compostos em épocas distintas e de temática variada – vem de um Sertão de denso Sincretismo e escava experiências milenares do homem para traçar sua Divinatória – termo insuficiente para cunhar todo o espectro da ação do poeta – do gesto humano de fixar-se no Universo. Vale-se do Tarô, do mito e de diversos outros elementos que possam fazer manar de dentro do indivíduo/criador a melhor experiência metafísica. No entanto, quem quiser interpretar os aspectos dessa fluição para encontrar espectros surrealistas, encontrará dificuldades para assinalá-los, pois não encontrará fragmentação do mundo e muito menos da personalidade do indivíduo na imagética em que os poemas são construídos. 
O Tarô – justamente pela polissemia do embaralhamento para busca dos “quatro caminhos” – é a junção de elementos da experiência da história e da cultura. Talvez por estes quatro caminhos T. S. Eliot tenha chegado aos Quatro quartetos, e, reconhecidamente, abordado a Terra devastada. Cada Carta carrega uma filiação cultural e retrata uma época. Talvez criado para escapismo de religiões monoteístas, pois surgiu num período de total aventura de descobertas como Cabala e Alquimia. 
Quando o Tarô se insere na modernidade, serve para busca de interpretação do interior do homem  esse bloco informe sem elementos químicos para composição de solidez, esse Século XV de onde sempre emergirá o domínio da dúvida, que é o fermento para o processo criativo. Por aí passaram Carl Jung e T. S. Eliot, e agora nele aporta Solidade Lima. Descrevendo só as Cartas dos Arcanos Maiores, fica aberto o jogo “na terna eternidade destes átimos”.
Vale-se do Tarô e do mito dos 12 Trabalhos de Hércules como se recorresse a eternos ideogramas chineses para expandir a compreensão de existir e de buscar onde se alocar no tempo, como “se se despisse o mundo da má sorte”. Mas esses elementos são insuficientes para afirmação de que genes surrealistas tenham preponderância na imagética da poesia de Solidade Lima. Ao descrever os Arcanos e os Trabalhos Grande Heróialguma estranheza obscura seconstrói dentro de cada peça do livro sem que prevaleça o lado volátil da individualidade do poeta. A sua metafísica não é de ebulição do espectro da individualidade.
Como um Bobo da Corte “sorrindo da morte”, inicia seu livro descobrindo que tanto “o Zero ou Vinte e Dois tudo seria”. Num processo de invenção mística ou mítica, o Homem inventa para explicar o que antecipadamente deseja ver esclarecido. Assim, tanto faz o Zero ou o Vinte e Dois, tudo vai dar naquilo a que está predestinado, mesmo ciente que o 21 estará sempre distante de esclarecer a totalidade. O homem, ao ler no Tarô ou na construção mítica a sua presença no mundo, tanto descreve e organiza a experiência divina quanto nega experiências sincréticas que foram insuficientes para apaziguá-lo em suas buscas. E quem assegura que o poeta quer uma divinização que defina e encerre as incertezas, se a sua atividade é de ampliar o espectro da dúvida? Para cada compreensão posta na mesa pelo poeta, outro elenco de dúvidasse abre.
Tanto na leitura do Tarô como dos trabalhos de Hércules, o poeta não se preocupa em antecipar sua compreensão do mundo, atendo-se mais em deixar que o significado possa ser lido pelo leitor em cada Carta que lhe é posta. Em poucos momentos exalta-se numa conclusão antropológica de seu tempo. Ao ler o mito da Hidra de Lerna, Solidade Lima compara-a ao “Estado que, acorrentando o povo, / constrói outro imenso monstro novo / para devorar, cair logo em seguida”. Pensamento que anda de parelha com Hanna Arendt, para quem o estado totalitário não dura para sempre. Este é o consolo – a hidra tem permanência assegurada só enquanto mito. Tem também o mito do Javali de Erimanto, que serve para lembrar outros assombros modernos: “até hoje assombra / outras casas e gentes com a sombra / dos lascivos dentes da corrupção”. Se não fossem para estas leituras, seria inútil a experiência do mito e seria desnecessário pedir o embaralhamento. Prova de que o criador pode escapar do real, mas a invenção está nele aprisionada como a estátua no corpo da pedra, e de que a leitura nem sempre é a desejada depois que são dispostas as Cartas.
Para chegar à sua invenção – na qual atua com excelência peculiar – Solidade Lima não seguiu a trilha do Barroco, mas da vivência dSimbolismo e do Surrealismo. Também essas raízes melhor se encaixam no sincrético do Tarô e das referências míticas selecionadas pelo poeta. No Soneto do Arcano XIII, esta tendência se manifesta com muita clareza:

“A delícia do sangue me alucina...
Conviva das caveiras e coveiros
devoro, parte a parte, o mundo inteiro
sem a sede saciar dessa chacina,
(...)”

E o soneto segue com outras referências simbólicas, com palavras grafadas em maiúsculas (Foice, Morte, Eu). É até oportuno indagar se vivemos um novo limiar de afirmação do Simbolismo através da experiência gótica da Pós-modernidade, pois seus elementos povoam a literatura, os jogos, a vestimenta e os filmes nesse abrir-se do Século XXI, tão distante do Século XV da invenção do Tarô.
Enfim, não é possível classificar a poesia de Solidade Lima apenas com o uso de um reagente. Há uma polissemia de elementos da tradição da poesia universal neste As lâminas do tarô e os 12 trabalhos de Hércules, que confirma a inventividade de um autor atento à realidade e à fundamentação do conhecimento mítico. É clássico, sem ser classicista. É simbolista, sem denodo de época. É poeta de invenção por atuar em determinada época, pela obrigatoriedade sincrética do território por ele ocupado e pela preferência gótica dos elementos míticos. Pode iludir com a retomada da forma fixa e da historiografia desenhada na antiguidade – no entanto, toda retomada é crítica, pois instiga o criador a uma reaprendizagem e a uma coragem de enfrentamento do que impera na territorialidade de seu tempo
Ao longo da segunda metade do Século XX, a poesia se diluiu tanto, criando uma exaustão da experiência da desintegração, que o surgimento de um poeta novo e ágil como Solidade Lima, dominando os seus rudimentos, é alvissareiro para reconstrução da credibilidade da Poesia Brasileira – mesmo que tenha de continuar lidando com elementos de uma realidade que insiste em se realizar com penumbras desfavoráveissem nunca abrir perspectivas deconforto para o Homem. Quando fala em manhã, é “a manhã – atômica semente”. Quando toca na estrela, é “a estrela que dança e morre à míngua”. O poeta tem de lidar com o tempo aferrado à esperança de que as mãos podem criar abertura para a claridade. Se é possível adivinhar só através das operações do obscuro, Solidade Lima esculpe numa “força inútil, nula e vã” para sangrar “dos continentes a manhã”:

“(...) os corações
que dessas mãos em tecla esculpem sóis.”

Nenhum comentário: