Morre Herondes, o Cezar da crítica de cinema, aos 79 anos
Poema de
Emily Dickinson
Dizem,
“com o tempo se esquece”,
Mas
isto não é verdade,
Que
a dor real endurece,
Como
os músculos com a idade.
O
tempo é o teste da dor,
Mas
não é o seu remédio —
Prove-o
e, se provador for,
É
que não houve moléstia.
(Tradução
de Aíla de Oliveira Gomes)
É o Herondes,
o Cezar do cinema? Era assim que, eventualmente, eu abordava Herondes Cezar, um
dos melhores críticos de cinema do país.
Herondes Cezar
era um mágico das palavras, dado seu amplo conhecimento da Língua Portuguesa,
do cinema e da literatura. Era uma espécie de Google do cinema. Tanto que,
antes de consultar o site de buscas, às vezes eu entrava em contato com o
Glauber Rocha da crítica. Com sua memória prodigiosa — derivada da paixão pelo
cinema, com que, digamos, se casou para toda a vida —, não precisava consultar
nada. Dizia na lata: “Billy Wilder fez o filme “Quanto Mais Quente Melhor”, com
Marilyn Monroe e Jack Lemmon, em 1959. É imperdível. Diversão de primeira
linha”.
Herondes Cezar
escrevia como estilista da Língua Portuguesa | Foto: Facebook
Há cerca de 10
anos, ou um pouco menos, eu e Candice Marques de Lima, minha companheira,
almoçamos com Herondes Cezar em Brasília. Ele fez questão de pagar o almoço,
num restaurante por quilo; muito bom, por sinal. Depois, fomos para seu
apartamento. Lá, escolheu o filme “O Discreto Charme da Burguesia”, do cineasta
espanhol Luis Buñuel. Com aquela sua nobreza característica, não disse uma
palavra durante a exibição. Depois, perguntou nossa opinião e a escutou
atentamente, como era de seu feitio.
Há pouco
tempo, em companhia de Candice e do poeta Salomão Sousa — um de seus melhores
amigos e amparo —, nos encontramos na Livraria Travessa, no Shopping Casa Park,
em Brasília. Herondes Cezar me deu um DVD de um filme sobre a Irlanda e eu lhe
presenteei com um livro sobre o jornal “O Pasquim”. Ele agradeceu, certamente
por gentileza, porque as cousas da esquerda, naquela quadra da vida, não lhe
interessavam mais.
Durante o
encontro, Herondes Cezar quase não falou. Porque um crítico de música,
chatíssimo, não parava de falar e de fazer declamações. Eu observava o rosto de
Candice, Salomão e Herondes e via certo descontentamento. Porém, por educação,
não reclamavam. Não fosse pelos três amigos, eu teria dormido ante a vaidade
doentia do sabe-tudo bolsonarista.
Poema de
Rudyard Kipling
Se
Se és capaz de
manter tua calma, quando,
todo mundo ao
redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti
quando estão todos duvidando,
e para esses
no entanto achar uma desculpa.
Se és capaz de
esperar sem te desesperares,
ou, enganado,
não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo
odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer
bom demais, nem pretensioso.
Se és capaz de
pensar – sem que a isso só te atires,
de sonhar –
sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se,
encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da
mesma forma a esses dois impostores.
Se és capaz de
sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas
as verdades que disseste
E as coisas,
por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las
com o bem pouco que te reste.
Se és capaz de
arriscar numa única parada,
tudo quanto
ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao
perder, sem nunca dizer nada,
resignado,
tornar ao ponto de partida.
De forçar
coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o
que for que neles ainda existe.
E a persistir
assim quando, exausto, contudo,
resta a
vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!
Se és capaz
de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis,
não perder a naturalidade.
E de amigos,
quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos
podes ser de alguma utilidade.
Se és capaz de
dar, segundo por segundo,
ao minuto
fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra
com tudo o que existe no mundo,
e — o que
ainda é muito mais — és um Homem, meu filho!
Herondes
Cezar, que não era de esquerda, relutou em comparecer para a resenha exatamente
por causa do “chato de galochas” (ele morreria de rir da expressão). Mas, em
respeito a mim, a Salomão e a Candice, decidiu comparecer.
Recentemente,
Herondes Cezar, que morava sozinho — ou melhor, com suas centenas de filmes,
verdadeiros filhos —, caiu numa rua, em Brasília. Aceitando
recomendação médica, recolheu-se numa casa de idosos. Lá, de acordo com uma
pessoa da família, parecia satisfeito, falando de cinema para os novos
companheiros de jornada. Aos velhos amigos, sugeriu que havia virado monge e,
por isso, rompera com o passado. Não tinha mais passado. Era a senha: não quero
contatos. Só a família o visitava (sempre me falou com orgulho de uma filha
cantora lírica).
Na
quinta-feira, 24, Herondes Cezar — com “z”, insistia, quando enviava algum
texto sobre cinema — morreu aos 79 anos. Fui avisado por Salomão Sousa, que
teve a delicadeza de me enviar uma reportagem de Danylo Santos, do jornal “Mais
Notícias”.
Nascido em
Piracanjuba, Herondes Cezar era apaixonado pela cidade goiana — sua Ítaca.
Falava com orgulho e lirismo das coisas e pessoas do município, conhecido como
a Capital das Orquídeas do Cerrado.
O que Herondes
Cezar tinha? Por certo, uma tristeza profunda na alma, uma desconexão com a
superficialidade do mundo atual, com suas amizades e ideias, por assim dizer,
“líquidas” (na verdade, liquidadas). Havia uma inadequação entre este homem
culto e delicado — amigo dos amigos (como Lisandro Nogueira, Lourival Belém e
Salomão Sousa) — e a brutalidade do presente. Ele falava baixinho, com seu
português escorreito, mas não pernóstico. Era um ser agradável. Parecia um
mago… um mago nobre. E era um mago (do cinema) e nobre.
Herondes
Cezar, como bem disse Danylo Santos, era crítico de cinema e escritor.
Sobretudo, era um intelectual refinado. Porém, modesto, não se considerava como
tal. Havia uma cultura sedimentada em Herondes Cezar, por isso parecia natural,
e não constituída, durante anos, por vastas leituras e reflexões.
Quando os
textos de Herondes Cezar chegavam à redação do Jornal Opção, no
qual colaborou por algum tempo, era um prazer editá-los. Primeiro, porque eram
muito bons, com alto espírito de síntese. Eram artigos ponderados, meditados.
Segundo, porque não havia erros de português. Sua preferência era pela língua
cultura, precisa.
O crítico não
perdia as cerimônias do Oscar e apreciava mandar as informações a respeito. Aos
poucos, porém, foi desanimando. Deixou de postar no Facebook. Talvez estivesse
esperando a hora final, que, para um homem de cultura, que deixou livros — como
os ótimos “Era Uma Vez no Cinema” e “Becape da Memória” —, só chega em termos
físicos. Herondes Cezar permanece vivo pelos livros, por sua crítica de cinema
aguda e na memória dos amigos. Entendia tanto de cinema que, quando via um
filme recente, era capaz de arrolar as “citações”, sutis ou não, de películas
clássicas.
Nós, os
amigos, como Salomão Sousa, eu, Lisandro e Lourival Belém (que, como
psiquiatra, cuidou dele por certo tempo), amávamos Herondes Cezar, aquele homem
magrinho e baixinho, com ar refinado e levemente sardônico. Parecia um lorde
britânico nos trópicos.
Herondes
Cezar na fala de Salomão Sousa
O poeta,
prosador e crítico literário Salomão escreveu no jornal “Mais Notícias”:
“Grande amigo. Há ausência física, mas permanece seu espírito ativo, de
amizade, conhecimento rígido, quase cético, mas de ilustração de nossa cultura.
Visitei a Academia de Piracanjuba sob seu convite, onde fiz palestra. Serei
eternamente fiel à nossa amizade”.
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