José Fernandes
A poesia é uma arte de linguagem, em que a palavra é vergastada, a fim de
sangrar novos significados, obtidos, principalmente, através da imagem,
definida por Octavio Paz, como a cifra da condição humana. O papel desempenhado
pela imagem se reveste de singular importância no discurso poético, no momento
em que transfere a palavra da esfera da denotação para a esfera da conotação, e
ela ascende a uma dimensão metafisica, por intermédio da fusão de suas
essências, responsável pela instauração do caráter polissêmico e estético
próprio do poético. É com essa visão do belo estético que lemos Vagem de
vidro (Brasília, Thesaurus, 2013), do poeta Salomão Sousa, uma vez que a
despeito de suas imagens ensejam um discurso original, singular, pautado por
jogos semânticos e interculturais que proporcionam verdadeiros dribles na
esfera da linguagem.
Não fosse sua conformação imagética sui generis e não teríamos a beleza da
viagem empreendida pela história da poesia através da poesia e do
entrecruzamento com a intertextualidade e, muitas vezes, com a
interculturalidade, uma vez que se lê uma verdade histórica sobre a outra, em
inusitado palimpsesto. Assim, na primeira estrofe, as imagens, muito bem
construídas, remetem-nos a Shakespeare, nomeadamente à peça Macbeth, como
sugerem as referências à luz, às ervas e ao bêbedo, em imagens que lembram bem
o estilo maneirista praticado pelo dramaturgo: “Em meio ao espelhamento das
escolhas/acontecerá o excesso de luz a ressecar as ervas,/ideias que se ligam
ao soco, às intrigas,/o cervo a assistir a velocidade dos bêbedos.” Além disso,
a estrutura da tragédia, típica de Shakespeare, na palavra intriga, uma vez
que, nessa peça, o trágico nasce dos limites da condição humana e do destino,
fugindo um pouco da trama peculiar à tragédia grega.
Mas,
na segunda estrofe é que se encontra o móbil do poema de Salomão e da peça, uma
vez que, ao nomear a palavra, está, além de referir-se à instauração do
trágico, mediante a pronúncia de uma palavra, também lembra a carta escrita por
Macbeth dizendo que permanecerá no castelo, ato que ensejará o assassinato. É
exatamente por isso que a palavra “se precipita” e procede-se “a reabilitada
confiança de volta ao conflito”.
Sintomaticamente, às imagens construídas para lembrar Shakespeare,
seguem-se, na terceira estrofe, em apenas dois versos, as que lembram Poe, com
seu poema, "O Corvo": “No momento que temos a satisfação do pássaro,/do
estrangeiro na sacada a traquinar feliz. Feliz.” Exatamente pelo tema do
destino, entendido como tragédia do homem, acoplam-se à intertextualidade de
Poe imagens marítimas montadas sobre A divina comédia, de Dante, em que os dois
últimos versos são lapidares, ao referirem-se à viagem prefigurada pelos remos
e à chegada ao “porto do encalhes”: “Com o movimento dos remos, os
comandantes./ A esquadra perfilada no porto dos encalhes.”
Sabiamente montada, a sua viagem pela poesia é, também, aquela viagem própria
do homem peregrino, do homem que mergulha dentro de si mesmo, como se verifica
na quarta estrofe, constituída de apenas dois versos que resumem essa parte do
poema: “Ah! a luz que resseca as ervas não perdoa o corvo;/invade os limites,
danifica as trevas.” Ademais, na sequência do poema, temos imagens que lembram
a figura de Ulisses, em sua conturbada viagem de homem e de semideus, a marcar
a duplicidade do homem, que é ora sublime, ora miserável. A capacidade de
síntese dessa estrofe, só possível mediante o uso de imagens, é realmente
lapidar, em termos de discurso poético, pois encerra os aspectos físicos e
metafísicos da aventura de Ulisses e a dimensão ontológica da fidelidade de
Penélope. As imagens, nesse caso, tecem o texto, como a mulher tecia o amor
intransferível, em seu fio de permanência e de fragilidade: “Ulisses, depois de
ti, instaurado o fim das aventuras;/na antessala, extintos o bulício e a castidade
dos amantes.”
Muito
significativamente, quase no centro do poema, opera, em uma espécie de cadinho
alquímico ou de baricentro, a interação entre o passado e o presente da
literatura e das artes, em que Homero dialoga com Quintana, com a simbólica
Aldebarã e com a guerra fingida de Findley. A partir dessa estrofe, as imagens
se tornam altamente irônicas, à medida que os elementos imagéticos e
imaginários do ontem são utilizados para satirizar as mazelas do presente.
Desse modo, as imagens náuticas usadas para se falar das aventuras de Ulisses e
do amor fiel de Penélope, por exemplo, convertem-se em sátira aos costumes
hodiernos, reflexos dos males que assolam a humanidade.
Desses
males de que Ulisses não escaparia, ressalta-se a imagem dupla da navegação,
agora transferida para a internet, que estila forte ironia às viagens pelas
redes sociais, que se desencontram “no led do papel”. A representação desse
desencontro se faz mediante imagem poética singular que envolve tecnologias
modernas, que nos levam a denominá-la imagem cibernética, ou ciber-imagem.
Ulisses, dentro desse mundo, conformado em “costas dos encalhes”, revelar-se-ia
impotente, porque, ao contrário das navegações antigas, as máquinas do presente
perturbam “as noites de tua cidade, de tua mãe insone.”
Na ambiência do moderno, até o amor e seus símbolos, que o convertem em
sentimento metafisico, desfazem-se, porque, como já dissera Albert Camus, tudo
perde a importância. Se não se flerta mais um rosto à porta, até a noção de
herói se desintegra, porquanto, repetindo Gaston Miron, o homem se transforma
em restolho, porque, desprotegido como o calcanhar de Aquiles, o mundo se torna
perigoso, como vemos na última estrofe desse poema ímpar: “O edema, o sequestro
relâmpago. É a ausência do fluir./ Se não há herói para ir a Ítaca, à
Esplanada,/ os homens a enrijecer-se. Secas as mãos de virar/a próxima página e
de desnudar Eurídice.”
A leitura desse poema constitui uma amostragem de quanto é rico, esteticamente,
Vagem de vidro, pois, nele, o poeta trabalha a linguagem em imagens que cifram
a condição humana, como se vê no contraste entre o passado e o presente poético
e humano. O presente, pautado por transformações de valores nem sempre
positivos, constitui uma nova forma de aventura revelada mediante refinada
ironia, em que a imagem do corvo funciona como deglutição cultural e como
matéria de um tempo sinistro. Confiram! Parabéns, Salomão. Deo gratias et
Mariae!
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