terça-feira, 27 de março de 2007

Ronaldo Costa Fernandes

A força da poesia de Salomão Sousa

De temática mista, Ruínas ao sol (editora 7Letras, 2006), de Salomão Sousa, mescla as expressões da vida moderna com palavras, hábitos e elementos da vida rural (“safra quebrada nas lâminas”). Não é, contudo, uma poesia rural. Pelo contrário, utiliza-se de alguns componentes rurais para esculpir obra singular. Salomão Sousa utiliza-se de linguagem pessoal e demonstra não ter influência forte ou deixar-se levar para uma “imitação” das grandes linhagens da poesia brasileira. Este é um dado inusitado na poesia brasileira, onde se percebem claramente as influências e tendências do poeta. Há uma sucessão lógica e imagens curtas, mas que carregam consigo um universo imagético muito mais amplo e audacioso. Não existe lugar-comum, e a dicção sólida e unificada, sem perda de ritmo. Sobre o ritmo, pode-se assinalar que o poeta o mantém de forma contínua, sem quebra da harmonia inicial. Não há desnível entre os poemas (na verdade, o livro parece compactar-se num longo poema-rio), o que lhes acrescenta mérito. Este livro aponta para uma madureza do poeta. Acredito que a constância e a coerência ritmo-conteúdo-linguagem demonstram que Salomão Sousa é um poeta que domina sabiamente o árduo ofício. Livro de difícil deciframento, volume denso, não chega, contudo, a ser um livro hermético como um Invenção de Orfeu. Exige, entretanto, leitura e releitura. E é na releitura dos poemas que se descobre tema, conteúdo e a formulação intrigante com a qual o poeta trama sua poética. Imagens como: “heras de seus braços”, “renúncias dos horizontes”, “dormências dos rios das lontras”, “as moscas da febre, ruínas nas portas do advento”, “esterqueiras das incertezas”, entre inúmeras outras construções, reafirmam o cuidado com a elaboração poética mais exigente. Aqui não há o lirismo fácil, mas a construção exaustiva de poetas laboriosos. Observa-se trabalho formal na formulação temática e na escolha especular do vocabulário. Desde os motivos para “iludir a morte”, dos pequenos “dos lábios nas bocainas do engenho” até uma maior como “o empenho em desligar as ogivas”, percebe-se que não há gratuidade no jogo de palavras, o que se tornou, abrindo um parêntese, uma constante na poesia brasileira encantada apenas com a sonoridade práxis e concretista injetada na nossa recente história literária. Salomão Sousa é um poeta com boa trajetória. Estreou com a publicação de A moenda dos dias (1979). No ano seguinte, acopla A moenda dos dias a outro livro intitulado O susto de viver, num só volume, publicado pela Civilização Brasileira. Em 1986, aparece seu terceiro livro de poemas: Falo. Sete anos depois, vem a lume Criação de lodo e, em 1994, publica Caderno de desapontamentos. Em 2002, sai Estoque de Relâmpagos, livro premiado pela Secretaria de Cultura do Distrito Federal. Sempre experimentando, buscando novas formas de expressar-se, Salomão alcança com este Ruínas ao sol o prêmio nacional do Festival de Poesia de Goyaz. É uma dicção distinta das manifestações poéticas dos outros livros, embora se possa rastrear nos livros anteriores a estrada em que Salomão Sousa está empenhado em trilhar no seu caminho poético. Logo de início, Salomão nos avisa de forma não intencional de sua poética: a mescla do degradado com o sublime: “reservas de estrume guardam cores”. Embora inicie com um aviso também de derrota, Ruínas ao sol é um livro em que a visão otimista se sobrepõe à visão derrotista. “Depois das derrotas, dos desterros, das ruínas brocados de vento já chamam dos horizontes reservas de estrume guardam cores daqui se vai para as aventuras” E, dentro do parâmetro derrota/superação, outro par semântico assemelhado se apresenta constante: o órfico, a vitória da vida, x o tânatos, a derrota e a morte. Oposição em que sai altaneira e dionisíaca a preponderância do sim vital, contra o não mudo da morte. Assim, signos positivos se acumulam frente à derrota dos pântanos, quedas e guerras: janelas abertas, cios, portas do advento e bons desejos. São várias e alvissareiras as imagens transmudadas ou explícitas da positividade: “Mas não haverá a guerra dos cem anos/ mas janelas abertas, a retirada dos vazios”. A primeira tensão existente e nuclear entre campo e cidade, natureza e cultura, barbárie e civilização, percorre todo o livro. Antes o culto se apropria do natural e transforma-o em elemento poético e erudito. Salomão Sousa não é o aedo do bucólico, o bardo do melancólico mundo perdido, o paraíso da infância ou o ideal mundo da natureza rural com seu linguajar próprio e muito arraigado às tradições e conservadorismo. O rememorar alambicado geralmente incide na fixidez de um tempo sem mutação e, logo, um tempo estático, não real, idealizado e, quase sempre, ou infantilizado ou imune às transformações do mundo contemporâneo. Há um elencar de metáforas campestres, como dissemos, mas a poesia de Salomão Sousa não é passadista nem rural no sentido de tratar do campo como tempo imobilizado ou saudosista. O campo está ali como contribuinte metafórico e emblemático de confrontos de vida x morte (sol x ferrugem). Há também uma expectativa de algo futuro. Em toda a poesia, o poeta parece alertar o leitor da “nesga de neblina” que leitor e autor atravessam, embora haja “intrigas guardadas em curtumes”. Também a existência de perigos não visíveis. O poeta sente-se quase na obrigação do alerta das intrigas – intrigas do tempo, da vida e da morte. “Na nesga de neblina atravessamos As intrigas guardadas em curtumes Ali florescem pústulas, pensamos em lugares ao sol e estamos vesgos As perdas desconhecem nossa porta Na barreira dos Ventres aguardamos sem que o porte dos numes nos conforte Passos em falso anda a sabedoria enquanto eles não nascem, os homens nus Ao sol, trevos despertos, pertos cumes! Na terra dos Ventres não nasceu a morte também a dança da peste inexiste Damos velas às nossas vigílias Com os idílios dos erros nós remamos” Embora alerte o leitor para o seu “desembarquei-me das incertezas?”, o poeta é um poeta do conhecimento. Não faz uma poesia epistemológica, ou seja, aquela que descreve fenômenos e tenta entendê-los – como um João Cabral, entre outros. Mas busca entender o descontínuo da existência, a dubiedade e ambigüidade do estar no mundo, não se recusa a participar da vida (“mas não ser no cerne a certa traça/mas não ser a mão que traça a retirada”). As viagens, símbolo de fuga e escapismo, aqui são resistência e permanência da positividade do ser (“saber da secura/há as paisagens”), embora reconheça o conflito de “içar velas” e “pés trançadas” que cria o confronto (p. 21) resolvido a favor da vitalidade e do futuro. Ruínas ao sol já é em si um conflito, pois que a primeira palavra aponta para o passado, a derrota, o vivido e a segunda palavra indica vigor, presente e poder de dar a vida – o sol. Mas o sol pode ser também cáustico quando ilumina o passado que foi grafado na pele (“Ao sol as ruínas da pele”, p. 22). “Abra janelas acenda candelabros”, da página seguinte, é uma vocação para pólo positivo, para o sol polissêmico e não para a ruína devastadora e negativa – já que até as ruínas são iluminadas. No poema da página 23, o poeta aponta para o futuro, “aprendiz de não saber voltar”, logo transformando a ruína em algo presente e apela com vigor para seguir em frente, lá onde está a solução do eterno conflito. Estará? No poema “Navego e o mundo é onde estou”, há dinamismo, mas este primeiro verso do poema mostra um paradoxo entre fixidez x estático. O poema apresenta o enraizamento não apenas no locus, mas em si mesmo – o poeta navega dentro de si mesmo. Portos, tálamos, goivos podem ser entendidos como objetos do estático que convivem com nautas, águas, navegar, jias, garotas indo sem rumo. Outra prova do conflito e paradoxo que não leva a algo “barroco”, mas a uma definição já especificada pela positividade e fé no futuro, está no poema da página 26 (“sossego do fogo” e “a mão fervente das gemas do sossego”). Logo, sossego aqui aquece e queima, ou então, fogo aqui não ameaça, “pois as ruas terão festa” e mão fervente também não agride, pois pertence ao espaço poético da gema (criação) do sossego (mansuetude). Logo a seguir, dentro deste mesmo plano de idéias, o poeta arremata o poema: “Não sou as águas”: “eu sou as trevas e clareias”. No poema borgiano “A lua vigia a viagem”, onde inverte quem vê e quem é visto, existe um pouco do quadro Las meninas, de Velasquéz. Um belo poema, delicado, diferente das imagens fortes e contrastantes dos outros poemas, este “A lua” é quase um conto árabe e o verso “Desarreia as mulas / que patearam a lua / no espelho das poças” lembra o “La luna vino a la fragua con su polisón de nardos” do cigano García Lorca. Esta lua tão cara aos poetas ao longo da história da poesia (v. Borges e sua conferência sobre a Metáfora, em Esse ofício do verso) se ilumina os passos da mula, do viajeiro e do menino, também, num raro poema nebuloso, o poeta aponta para a singular imagem do escuro existencial: “Também não há lua / na noite dos pensamentos”. Há, contudo, poemas em que o paradoxo ou conflito não se instala e o poeta afunda-se na desesperança de “terra derrotada”. O diabo é que não se pode falar de terra derrotada sem lembrar de T. S. Eliot. Mas, Eliot à parte, estas “raízes repetidas / por sopros adiados” é vítima da repetição, da rotina e dos atos mecânicos e vê que mesmo não vindo tempestade “não bateu a nova aragem”. As palavras se repetem na roda semântica, onda após onda, e chuva após chuva, “nas ramagens nunca renovadas”. Mesmo neste tipo de poema (p. 39), o poeta ainda reacende a velha chama do desejo: “venho às ruínas desejar”. A tempestade perpassa alguns poemas, ora mostrando face de destruição, ora de renovação. É um signo de transformação de que deseja derruir para reconstruir. É preciso inventar a tempestade como símbolo do remexer universal. Ao fim e ao cabo, a tempestade “espalha o amor onde o sol trabalha”. Embora no poema da página 53 afirme que existe “um dardo de dúvida”, o que é mais certeiro e alvo é a negação dos símbolos positivos como estar “perdido de constelações” – natureza astrológica e natureza ambiental norteiam esta poesia de Salomão Sousa. Mas, mesmo assim só o que o salvará é a lua, mas, observe-se, “lua fora de estação”, logo o esquerdo, o lado inusitado das coisas. “e este dardo da dúvida e esta lâmina da dor e esta noite sem lírio lanham minhas nádegas desequilibram minha astúcia e os poços das ausências estou perdido das constelações e perseguido pelo deserto dos famintos cascavéis só uma lua sem a flor das águas arrancará do frio as minhas raízes derramará mares nos meus vazios só uma lua fora de estação fora de órbita de todo planeta vai me arrancar dos dentes do martírio” Poeta de convocatória, deixa escapar sua profissão de fé e, mais que sua poética, sua dolorida existência, ao convocar “crianças” (o lado inocente, ilógico e lúdico) e “lagartos” (rastejante poesia, que vai entre brechas, que sobe a parede do absurdo poético) para por fim (p. 60) apontar a poesia como resistência e fuga: “afugentar o bicho da espessa solidão”. Este poeta, tomado de “horto de espelhos” não é um narciso ou um solipsista. Quer participar, embora seus ombros não suportem o mundo, não se debruça na janela para observar o mundo, quer “a lenha das palavras” que “acende a festa”. É por intermédio do fogo das letras que reinventa sua participação na vida ordinária. Este ser plural – urbano/rural; solitário/coletivo; estático/movente – busca fênix de ser e de estar no mundo: “perder-se para nascer”. Logo o nascimento é conseqüência não de uma aventura do acaso, mas longo labor existencial e poético. Salomão Sousa não é poeta de palavras frouxas. Para construir sua escritura, há de trabalhá-la como o camponês com seu arado emprenha a terra de suor e semente. A presença materna é uma constante na poesia de Salomão. Seja apontando rumos, seja rememorando a infância ou o tempo perdido. A figura da mãe – aí incluída a mítica mãe terra – deveria ser melhor e mais longamente estudada, ficando aqui apenas o registro de uma figura que aponta estradas candentes (p. 70), ou seja, prefigura o rumo. Persistem em sua poesia as vinte simples palavras com que João Cabral construía seu verso, mas mescladas com palavras de uso ordinário: artemísia, leivas, zimbro, lianas, curiangos, atilhos, chavascal etc., geralmente ligadas à vida/natureza do campo. Há a promessa de ofertas de úberes: o rego cheio de peixes, chávenas de prata, montanha cheia de córregos, quando o poeta não apenas se satisfaz com uma visão promissora, advinda de uma dialética entre a negativo e o positivo, mas como ser superior que pode, num passe de mágica poesia, oferecer raízes, o úbere, lenda, sêmen, punhos fortes. Dentro da mitologia particular de Salomão Sousa (v. Octavio Paz, Os filhos do barro) há esse poder de dádiva que, sem declarar, só poderá advir de uma poderosa oferta que é a única em que o poeta pode fazer-se generoso: a palavra. Autor do livro A Moendas dos dias, vira e mexe o poeta tritura suas imagens cruas, rurais ou não, de natureza ou do espírito, embora sempre lembre que, ao lado da existência devastadora do que destrói e destroça, “há doçura” (p. 80). Salomão permanece no conflito: na ânsia de busca entre o que está moído, o que pode se aproveitar de humanismo, e a permanência – a doçura dos confrontos, “a flor no impacto enfurecido do vento”. Já poeta maduro, senhor de sua escritura, do verso terso, Salomão soma mais um ponto em sua trajetória. De forma contida – e por vezes cifrada, o que aguça o desafio de reconstruir o derruído pelas imagens fragmentárias –, o poeta alcança expressão própria, em meio a uma enxurrada de poetas prosaicos e de ditos chistosos, ele, que, em vez da leveza de um origami, coloca-se diante da massa bruta e agigantada de um elemento da natureza – bronze, mármore, ferro – e não teme o trabalho fabril de talhar sua poesia com metáforas que martelam, açulam e desafiam a figura exuberante que nascerá inédita: a poesia de Salomão Sousa é obra talhada a ferro e fogo, a moenda e susto, a esperança e sob o mais rigoroso lirismo para vencer a blandícia dos versos frouxos de cada dia.

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