terça-feira, 27 de março de 2007

Diálogo com Victor Sosa

Apresentação de Ronado Costa Fernandes

Aqui o leitor terá uma visão de duas literaturas de herança ibérica. Dois poetas se propõem a discutir a contribuição que Espanha e Portugal propiciaram às literaturas em novo solo americano. Um brasileiro, Salomão Sousa, e outro, o uruguaio-mexicano, Victor Sosa. Não somente os igualam a força de suas produções poéticas e nem a coincidência dos sobrenomes (Sousa/Sosa), mas a preocupação com a visão crítica da produção do passado e do presente na América espanhola e no Brasil.
Ainda que não abone algumas nomenclaturas por eles aceitas, não posso deixar de reconhecer a força de seus argumentos e a argúcia de suas análises. Para mim, o termo pós-vanguarda não se enquadraria muito ao Brasil – prefiro o corrente pós-moderno. Há sempre de lembrar que a palavra modernismo corresponde nas duas línguas a manifestações distintas. Na espanhola, refere-se ao parnaso-simbolismo de Rubén Darío e, para nós, diz respeito justamente à nossa vanguarda do princípio do século XX com Mário e Oswald de Andrade. Quanto à expressão neobarroca (brilhantemente analisada pelo cubano Severo Sarduy), a mim me parece mais uma manifestação da transição entre modernismo (na expressão brasileira), declínio das vanguardas em direção às manifestações da pós-modernidade (aí incluiria também o nosso Guimarães Rosa e, talvez, Autran Dourado, entre outros brasileiros).
Há bastante curiosidade neste diálogo literário: de um lado, observa-se o orgulho da literatura de língua espanhola que tem o poeta Victor Sosa e, por outro lado, certo desconforto de Salomão Sousa com seu passado literário. Lembro que o Barroco tem uma exuberância e influência fulcral não necessariamente na tradição (já que o Barroco brasileiro foi redimensionado pelo Modernismo de 22), mas nas formas mais modernas de produção literária. E que Vieira, autor de dois mundos, é um marco em nossa literatura. E recordo que Cláudio Manuel da Costa, quando chega ao Brasil, traz consigo um traço barroco que dá à sua poesia neoclássica o tom de penumbra e dor que, se alguns o vêem como apenas transição, percebo-o como um grande poeta angustiado pelo seu tempo e miséria humana.
Não me alongarei, porque a mim me cabe apenas apresentar os dois poetas que, pela internet, se propõem a um diálogo profícuo que, como eu, fará o leitor inquietar-se e, quiçá, desejar participar pelo candente do tema e pelo prisma singular dos dois poetas. Convido os leitores a seguir a “conversa” literária de Victor Sosa, que nasceu no Uruguai em 1956 e vive na cidade do México desde 1983, e de Salomão Sousa, que nasceu em Silvânia (GO), em 1952, e está em Brasília desde 1971.
Autor de Decir es Abisinia, entre outros livros de poesia, crítica e ensaio, Victor Sosa mantém viva ligação com a poesia brasileira. Traduziu Poesía y composición, de João Cabral de Melo Neto, e tem inédita a tradução de Farewell, de Carlos Drummond de Andrade. E figura na antologia Jardim de Camaleões, de Cláudio Daniel, que acaba de ser lançada no Brasil pela Iluminuras. Também atua como professor universitário, e é detentor dos prêmios Luis Cardoza e Aragón para Crítica de Artes Plásticas (do INBA e Governo de Nuevo León); Nacional de Poesia Pancho Nácar (do Município de Juchitán, Oaxaca) pelo livro Decir es Abisinia; e menção honrosa do Ministério da Cultura do Uruguai e da Intendência de Montevidéu, respectivamente, pelo livro Los animales furiosos.
Salomão Sousa começou a publicar na época da Poesia Marginal, em Brasília, com Esbarros. Impulsionado pela aceitação de A moenda dos dias, em 1979, inscreveu no INL o livro O susto de viver, que seria editado pela Editora Civilização Brasileira. Organizou as antologias Em canto cerrado (de poesia) e Conto candango, com escritores de Brasília. É um dos 47 poetas incluídos no número que a revista portuguesa Anto dedicou em 1998 à literatura brasileira em comemoração aos 500 anos da descoberta do Brasil. Está inserido na Antologia da nova poesia brasileira (1992), de Olga Savary; e na A poesia goiana do século XX, de Assis Brasil. Seu livro Estoque de relâmpagos, de 2002, foi o vencedor do Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária da Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal. Fichado na polícia pelas polêmicas de seu zine Chuço, Salomão Sousa têm inéditos livros de aforismos, poemas e crítica. (Ronaldo Costa Fernandes)

Victor Sosa: alegra-me que tenhas gostado de meu poema (publicado no Mais!); só hoje me inteirei de sua publicação por Cláudio Daniel, que foi seu tradutor. O poema pertence a um livro que publiquei em 2000, chamado Decir es Abisinia. Publiquei dois livros depois, com uma tendência para o neobarroco, que é o que me ocupa ultimamente.

Salomão Sousa: Li outros poemas de sua autoria em páginas da internet. Confirmam a inventividade encontrada no que foi traduzido por Cláudio Daniel. Mas na poesia neobarroca – eu prefiro pós-vanguardista –, que se consolidou nas vertentes da poesia pós-moderna a partir da década de 90, os versos não se encadeiam numa sintaxe perfeita. As palavras vão criando novos segmentos frasais, com dissociação de complementos. Mas isto é passado e só podemos ficar contentes com a sua poesia. Agora, no presente. Há, atualmente, uma certa desvalorização, descrédito mesmo, para entendimento do Barroco. Como a América sofreu (tardiamente) influência do Barroco, temos a tendência de reagrupá-lo nas novas correntes artísticas. Acredito, no entanto, que seria salutar e apropriado aproximar essas novas correntes de movimentos mais evolutivos, o que daria mais credibilidade crítica às novas práticas poéticas. Como somos herdeiros, não só do barroco, mas do modernismo, das vanguardas e do surrealismo, estamos inseridos num período informe, que eu prefiro aceitar como pós-vanguarda. E isto está muito bem inserido nos seus poemas, que pude conhecer agora. Há mais elementos da realidade que da imagética religiosa. E uma busca de integração à realidade, “detesto/tanto deserto”.

Victor Sosa: Muito interessantes teus comentários a respeito de minha poesia. Por outro lado, é certo o que dizes, que no neobarroco há uma ruptura da sintaxe a partir da imantação das palavras e de certa concatenação do discurso poético. O conceito de colagem, próprio das vanguardas, agora dá lugar a uma contigüidade de som/sentido, a um fluir metonímico sinuoso que se ramifica. Isso está em Haroldo das Galáxias, em Leminski, em Perlongher, em Kozer, e em minha poesia. Estou de acordo contigo quanto a preferir o termo pós-vanguarda, que é mais amplo e indiscutivelmente representativo desta época de prefixos. No entanto, não entendo porque dizes que o Barroco foi tardio na América. No México, por exemplo, foi uma das primeiras manifestações estéticas dentro dessa coisa chamada “Identidad mexicana” (seja lá o que for isso), que começava a formar-se no século XVI. Na arquitetura, com o churriguerismo (esse barroco transplantado, ainda que nascido na Espanha, característico destas terras) e, na poesia, com Sor Juana. Nesse sentido, o neobarroco seria uma conseqüência e uma continuidade... lembrando, é claro, por isso que, de maneira pertinente, agregas: o modernismo, o surrealismo, as vanguardas. Todo é causal neste mundo, e a poesia tão pouco escapa dessa condição.

Salomão Sousa: Atualmente, no Brasil, há diversas maneiras de entendimento do Barroco. Muitos julgam que ele não foi um movimento autêntico, pois até Gregório de Matos – o expoente do período, que nasceu em 1623, mais de 20 anos após o início do movimento – teria se limitado a transplantar poemas europeus para a realidade nacional. E podemos dizer que Gregório de Matos e Antonio Vieira não estão sendo lidos – e muito menos influenciam ou teriam influenciado a poesia brasileira. As obras desses autores interferem muito mais no discurso político do que na prática poética. No Brasil, o Barroco não teve desdobramento. Não temos um escritor da estirpe de José Lezama Lima, Alejo Carpentier, Sarduy, García Márquez (na apresentação deste diálogo, Ronaldo Costa Fernandes agrega bem Guimarães Rosa, e poderíamos agregar ainda Ariano Suassuna, ainda assim ficaria faltando um nome na poesia). Se algum resquício do Barroco ficou na modernidade da poesia brasileira, ele se encontra em Murilo Mendes e Jorge de Lima, que ganham redimensionamento após a redução do crédito das vanguardas. Nunca estudei as influências dos autores estrangeiros na poesia brasileira. Mas aventuramos a dizer que o primeiro grande impulso veio de Victor Hugo, pois Castro Alves – que proclamava a presença do francês em seus poemas – é um dos mais aclamados poetas da história de nossa literatura. Portanto, a poesia brasileira demorou a afastar-se do pieguismo condoreiro, já que o seu amadurecimento só se deu com o advento do Romantismo. Até hoje se espera do poeta brasileiro que ele seja condoreiro, inflamado, de sangue amoroso, de exaltação à pátria. Esquecem que a poesia não existe para aquecer o coração, mas para enriquecer a língua, para alargar as possibilidades das palavras. No entanto, ainda existe um segmento que deve ser desligado da poesia de pós-vanguarda, pois seus praticantes se limitam a recortar o cotidiano. Trata-se de uma poesia fria, sem sonoridade, sem ligação com a realidade. Trata-se de uma poesia perigosa, que saiu da Poesia Marginal, mas sem entendimento tanto do Modernismo como das Vanguardas. Mas, Victor Sosa, por que a sua transferência da América do Sul para o México? Havia alguma busca de outra realidade? de outras poéticas?

Victor Sosa: No mundo hispano-americano, a verdadeira identidade poética começou com Rubén Dario, que soube reciclar bem a poesia francesa, sobretudo dos simbolistas e parnasianos (evitando a medíocre poesia espanhola do século XIX), e criando assim o Modernismo, o primeiro movimento poético realmente americano, que significou a maioridade diante desses venerados “pais” e “mestres” das metrópoles européias. Com Dario também se produz uma reacomodação, uma demarcação e um novo canal para a herança do barroco espanhol em nossas terras. A originalidade e a força de Dario – sobretudo dos Cantos de vida e esperanza – é enorme, e o nicaragüense terá uma inegável influência inclusive naqueles poetas fundadores da vanguarda: Vallejo, Huidobro, Neruda, Girondo (que não o negaram: “superaram-no” atendendo outros chamados do discurso poético). Não sei ou, melhor dizendo, não creio que no Brasil e na língua portuguesa tenham um antecedente desse tipo. Creio que todos nós, escritores latino-americanos, estamos em débito com Dario, incluindo Lezama Lima, Octavio Paz e muitos outros, e não me refiro a uma continuidade estilística (o Modernismo hispano-americano está bem morto e enterrado), mas, como tu dizes, para esse “enriquecimento da língua e para alargar as possibilidades da palavra”. Dario foi o primeiro a “enriquecer” e “alargar” e a levantar a voz acima dessa medíocre mimese a que estavam habituados seus contemporâneos. Foi o grande guru que insuflou a necessária confiança e auto-estima para que outros criadores abrissem seus próprios caminhos, e esses caminhos podem ser Trilce, de Vallejo, ou Altazor, de Huidobro, entre as mais imorredouras obras da poesia hispano-americana.
Quanto ao que dizes de Murilo Mendes e Jorge de Lima, penso que seu barroquismo, sobretudo neste último, passa pelos sinuosos meandros do surrealismo. Na América Latina barroco e surrealismo confluem com naturalidade, dir-se-ia que surrealismo chega para reavivar e deixar em dia a tradição barroca americana. Aí está Carpentier, e, sobretudo, Lezama, ou Reinaldo Arenas de El mundo alucinante. Trata-se de metamorfoses e de encarnações desses mesmos sopros que chegaram com a Conquista e que ainda continuam impulsionando a criação por estas terras.
Quanto à tua pergunta sobre essa transferência da América do Sul para o México, a resposta é simples: como tantos sul-americanos, coube-me viver a condição nômade imposta pela época, pelas ditaduras militares e pelas crises econômicas. Até aí tudo óbvio, sem dúvida, mais além do óbvio está o obtuso, esse escuro desejo de sair do mundo excessivamente previsível, o Uruguai, e encontrar outras realidades, outros desafios e, portanto, outras poéticas. Talvez sejam poucos os que emigram por motivos poéticos (teria que propô-los ao ACNUR – Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Refugiados), mas estou convencido que todo nomandismo, – seja imposto ou seja voluntário – implica uma mudança, uma transformação das coordenações poéticas.

Salomão Sousa: Não reconheço na Língua Portuguesa um poeta que servisse de fio condutor para permanentes delimitações poéticas, ou para consolidação do modernismo, como pretendes. Basta reconhecer que não há em Portugal uma figura central no Barroco, que impulsionasse as gerações futuras, seja lá ou aqui no Brasil. De Espanha, ao contrário, a luz das Soledades, de Gongora, continua a iluminar até nossos dias, comprova essa clarividência o romance Cem Anos de Solidão (o título desse livro sai de um verso gongórico). Apenas Camões continua, sem que isso seja uma marca registrada, ao longo do tempo, a alimentar a lírica, que não é uma faceta marcante do modernismo. Talvez os brasileiros, no entanto, tivessem uma resistência natural aos poetas portugueses, já que era a cultura do colonizador, para que tenham tido necessidade de buscar nos franceses e nos alemães rumos fortificadores para uma poesia que aumentasse a potência do grito de independência.
É de 1905 a edição dos Cantos de vida e esperanza, que contribuiu para a formação da poesia latino-americana. Três publicações, que saíram não tão distantes do livro de Rubén Dario, delimitariam novos rumos para a poesia brasileira: Últimos cantos (1851), de Gonçalves Dias; Os escravos (1883), de Castro Alves; e Eu (1913), de Augusto dos Anjos. Não que esses livros balizassem a poética nacional, ou que daí saíssem os rudimentos reais do modernismo, mas pelo menos fundaram a necessidade de delimitação de um novo solo pátrio, pois só daí é possível submergir as ramificações frutificativas da poesia. É bom abrir um parêntese – Gonçalves Dias anda pouco estudado por aqueles que buscam as fundações da cultura brasileira. A sua poesia tem raízes mais profundas do que o que tem alcançado as escavações dos pesquisadores.
Enquanto não surgisse uma burguesia, principalmente paulista, que conseguisse acesso à cultura, o modernismo não se integraria nestas plagas. E o progresso não seria ainda assim tão fácil, pois só a segunda fase do modernismo produziria os grandes poetas brasileiros. Aqueles da Semana de 22 produziram uma poesia libertadora, mas irresponsável com a sonoridade e com a elegância metafórica, já que foram apressados e festivos. E a poesia exige introspecção, recolhimento. E talvez o modernismo só se amadurecesse na terceira fase. Ou quarta. Pois só em 1952 seria publicado Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, e, de 1965, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. E nenhum desses livros descende em linha direta de Castro Alves, Gonçalves Dias ou Augusto dos Anjos. Para o surgimento da poesia do amadurecido modernismo brasileiro, muitas águas teriam de entrar ainda por nossas fronteiras.
Muitos vão chiar pela ausência de Manuel Bandeira, que transitou quase em todas as fases do Modernismo. Ou mesmo de Carlos Drummond de Andrade. Acontece, no entanto, que estes não foram poetas inventores, mas praticantes da eterna linhagem lírica. E dessa linhagem, sejam as vanguardas ou os barroquismos, nenhuma corrente da poesia pode se afastar ou a crítica de qualquer tempo pode condenar.
A poesia brasileira, desde os árcades mineiros, esteve sempre relacionada aos movimentos de emancipação. Antes de se preocupar com as negações de uma mimese lingüística, as correntes poéticas precisavam fundar a Pátria. Até hoje, sempre que se faz poesia, se faz por emancipação. Não é à toa que todo movimento de vanguarda é repudiado no solo pátrio. Talvez as vanguardas só sejam aceitas, sem vilipêndio, em solos desenvolvidos, que não tenham de buscar independência econômica. Mas este já é um tópico que está bem à frente do Barroco e do Modernismo.

Víctor Sosa: Certamente: Portugal não teve nenhum Góngora, nenhum Quevedo, tampouco –nesse oposto extremo da Língua– nenhum San Juan de la Cruz; o Século de Ouro espanhol talvez tenha sido uma feliz especificidade desse outro lado da Península Ibérica. Sem dúvida, depois desses três portentos do Século de Ouro, a poesia espanhola viveu um prolongado declive que só seria superado com a geração de 98 (Antonio Machado, Juan Ramón Jiménez) e, sobretudo, com a de 27 (Lorca, Alberti, Miguel Hernández, Jorge Guillén, entre outros), inclusive é essa inquieta geração –que tinha lido Mallarmé, Valéry e os surrealistas– que resgata Góngora do esquecimento. Muito já foi escrito sobre esse tema, mas recordemos o mais importante: a leitura que os jovens espanhóis daqueles anos fazem de Góngora só é possível graças à leitura dos poetas franceses e, principalmente, de Mallarmé. Sob esse filtro, sob essa nova preocupação com a forma, com a sonoridade e com a “tectônica” da palavra, é que Góngora adquire um estatuto “moderno”, se torna legível e de interesse para a visão poética do século XX. Como dizia Borges: cada escritor cria seus antecessores e, assim, reinventa o passado. Aquele Góngora incompreendido e esquecido durante mais de duzentos anos, logo advém como referência e autor de culto para certas gerações de poetas do século XX espanhol e, logo, latino-americano. Mas, insisto, isto não teria sido possível sem essa grande revolução da sensibilidade –e da “razão” poética– que aconteceu na França desde meados do século XIX até adiantados do século XX. A leitura que fazemos de Góngora é uma leitura moderna, uma leitura – se me permites o termo – “interessada” pela modernidade, vale dizer, traspassada e condicionada por esta; uma leitura, claro, nada inocente e tão diferente como distante da que podia fazer o homem do século XVII.
Sem dúvida, além deste renascimento da lírica espanhola, os poetas hispano-americanos mais relevantes viviam sob a influência francesa: lembremos que Huidobro escreve nessa língua seus primeiros livros sob os efeitos do cubismo; Neruda, Vallejo e Girondo recebem influências do surrealismo; nenhum deles desconhecia Mallarmé e os poetas simbolistas. A América hispânica do século XIX e começos do século XX, culturalmente falando, estava mais próxima da França que da chamada Mãe Pátria. Não é nada extraordinário: a França continuava sendo até então uma das referências mais importantes não só no campo da cultura mas também da política, da filosofia (o positivismo de Comte teve seus melhores frutos na América Latina com os governos liberais –penso no Cone Sul: Argentina, Uruguai, Chile– e os despotismos ilustrados –penso no México do ditador Porfirio Díaz–), da urbanística e dos “bons costumes” (do uso do haxixe até o prêt-à-porter). Mas a América Latina – nas suas duas principais vertentes: lusitana e espanhola – não são a exceção; o mundo inteiro estava sob domínio francês (de Buenos Aires a São Petersburgo) como hoje todos estamos sob domínio norte-americano. Nesse sentido, não acredito que os brasileiros tenham buscado esses “rumos fortificadores” como resistência à cultura dos colonizadores portugueses. Se Portugal tivesse sido nesses momentos uma potência cultural vigorosa e propositiva, seguramente o Brasil não teria podido evitar essa influência – e junto ao Brasil muitos outros países de outras línguas. Acredito que o território das artes não pode ser compreendido como um problema de colonizados e colonizadores (ainda que alguns modernistas tenham entendido assim). A arte não vai necessariamente de mão dada com o afã imperialista; a Alemanha nazista ou a Rússia stalinista não exportaram uma só idéia ou influência artística para o resto do mundo, se eram, naquele momento, impérios poderosos. Não sabemos (ou, pelo menos, eu não sei) por que uma cultura se expande, se ramifica e permeia outras culturas criando um código comum, um entendimento e um usufruto consensual. A decadência dos impérios da Espanha e de Portugal pode e tem muito a ver com a riqueza cultural da Francia monárquica e republicana, mas não explica ou encerra o assunto por um mecanicista entendimento do fiel da balança.
Acredito que o Modernismo da Semana de 22 também provém dessa vertente que passa por Mallarmé, Apollinaire e Marinetti, e pouco deve a um poeta como Augusto dos Anjos, no entanto, devedor da estética romântica do século XIX. É verdade que o modernismo brasileiro foi mais importante como atitude, como descondicionamento cultural e como revolta nas artes e nas letras de teu país, que como criador de obras imorredouras ou poéticas imprescindíveis. Certamente: depois da explosão inicial o terreno começa a cimentar-se com nomes como o de João Cabral de Melo Neto (que já não é, propriamente dito, modernista), com una técnica e uma depuração compositiva que não tinha o modernismo; mas João Cabral está mais próximo (e não só cronologicamente) da experiência concreta e neoconcreta de Ferreira Gullar, Haroldo e Augusto de Campos e de tudo o que Noigandres significa dos anos 50 por diante. Drummond de Andrade é um caso interessante por ser o poeta mais popular do Brasil, mas, em meu modo de ver, sua obra se empobrece à medida que fica mais popular. Bandeira foi importantíssimo como ponte entre a tradição e a vanguarda, o coloquialismo e o humor de sua poesia já prefiguravam a irreverência modernista antes de 22 – eu gostaria de compará-lo com Apollinaire em relação ao surrealismo.
Após chegar a este ponto (mesmo esperando que aprofundes, a partir de tua óptica brasileira, o que foi dito anteriormente por mim), que o próximo tópico que se impõe ao nosso diálogo é o da poesia concreta. Que importância tem para ti? É uma continuidade do modernismo e do espírito de 22? Ainda tem vigência como tendência poética?

Salomão Sousa: Talvez eu tenha sido um tanto impreciso quando disse que a poesia brasileira refutou a linguagem do colonizador. Não houve refutação enquanto ato de absorver uma poética, pois, se nada era derramado por aqui, nada havia o que entranhar na pele produtiva, mas, talvez num ato apenas defensivo, de resistência aos mandatários, houvesse preferência (termo excessivamente forte, pois em relações culturais não há preferências, já que as variáveis de uma aculturação são diversas) pelas linguagens de outras nacionalidades, mais libertárias. Ainda mais que o português não permitiu o rápido florescimento da cultura na colônia. Quase três séculos se passaram desde o descobrimento até haver preocupação com um parque que envolvesse universidade, teatros, imprensa. A cultura –aí sim o Barroco teve importância, sobretudo no Barroco Mineiro, com Aleijadinho– se limitava ao imaginário religioso. E essa preocupação não estava voltada para emancipação, mas para atendimento do filho do colonizador. Até os pórticos do Século XX, os livros eram impressos na Europa. Tenho insistido em lembrar àqueles que procuram menoscabar o cânone brasileiro que a nacionalidade brasileira é muito recente, que ainda está em formação em comparação com a civilização européia.
Para contrapor a ausência do Barroco nas letras brasileiras, talvez eu tenha minimizado a importância do Arcadismo. Pois, já que o Barroco foi inexpressivo na Língua Portuguesa, os árcades mineiros se valeram do Classicismo para legitimação de uma poética e de uma nacionalidade. Como os árcades tinham a prerrogativa da camuflagem embaixo de nomes de pastores, puderam somar a ação política à prática poética nos mesmos disfarces. Trata-se de movimento que aos poucos vai sendo recuperado, principalmente com a edição crítica da produção do período. Talvez o Arcadismo ainda vá se firmar melhor que o Parnasianismo ou do que o próprio Simbolismo. Serviu para a cor local do Romantismo e do Modernismo.
No meu parco entendimento, acredito que a expansão da cultura se dá em momentos de polarizações econômicas de uma nacionalidade. Só a expansão econômica não motiva o florescimento da cultura. Se assim fosse, o cinema norte-americano não seria tão pernicioso para a desestruturação do indivíduo em outras nacionalidades. Quando uma nação se expande em excesso, ela pode querer impor o medo em vez de querer ditar modelos culturais. Agora, quando uma sociedade avança economicamente, com uma burguesia interessada em interferir no espírito da humanidade, pode ocorrer o florescimento cultural capaz de interagir com outras culturas. Por isso, temos de ter muita cautela na aceitação do Concretismo. Ele floresceu num instante em que a burguesia tinha perdido todas as bandeiras, fossem elas políticas, artísticas ou econômicas. Assim, o Concretismo passou a ser uma espécie de expansão do urbanismo, já que a burguesia não conseguia habitar mais do que aquilo que conseguia construir. A arte passou a ser a expansão da habitação, aquela parcela que não precisava mais ser habitada. O burguês não precisava habitar nem mesmo com interpretação, já que a interpretação exige a presença do indivíduo em suas interações sociais. E o burguês já estava doente do individualismo que não quer ombrear com o outro.
Salutar o encontro, nas tuas interpretações, de vertentes da formação da poesia brasileira, que até os críticos insistam em negar ou desconhecer. Neste momento, eu diria que há um pequeno grupo, que gira em torno da Folha de S.Paulo, preocupado em não desgarrar o umbigo das vanguardas. Não é à toa que outras linguagens não conseguem furar o dominador bloqueio crítico da imprensa paulista. E, para contrapor, diversos segmentos nacionais –sem que tenha noção explícita da situação– condenam o Parnasianismo, mas praticam um velado Simbolismo. Eu não compreendia essa atual necessidade simbolista da poesia brasileira, mas, neste instante, através do nosso diálogo, compreendo que, numa fuga das vanguardas, algumas vertentes preferiram leitos imantados do Simbolismo, que não irão alcançar terrenos sólidos, já que eles vão contra o desaguar natural da formação poética brasileira.
Depois do Modernismo de 22, muita coisa aconteceu na poesia brasileira. Só para entrelaçamento com as tuas observações sobre o positivismo, chegamos a ter até o movimento Verde Amarelo, capitaneado por Plínio Salgado e Cassiano Ricardo, de cunho nazi-fascista. Dessa bandeira ficou o jargão “Ordem e Progresso” em nosso pavilhão. Quando Cassiano Ricardo acordou para a situação, bandeou para a práxis. No auge do modernismo, alguns chegaram a reagir com situações mais formalistas, instaurando o movimento da Poesia de 45. Só que o Concretismo não seria reação pura e simples a esses movimentos. Vinha acompanhado das novas visões urbanísticas – basta ver a passagem de Le Corbusier pelo Brasil e por outros países da América Latina pregando a ampliação do ambiente em novas formas. Basta ver o retorno de Oscar Niemayer das aulas de Le Corbusier, em Paris, pronto para enfrentar o concreto de Brasília. A burguesia queria mudar a visão exótica da paisagem brasileira. JK buscava inserir o Brasil entre as grandes nações.
Os concretistas entraram nesse vácuo e contribuíram para colocar o Brasil na vanguarda literária das outras nações, sem a necessidade de atribuir à poesia o papel emancipacionista da nacionalidade. Não só os concretistas contribuíram para levar a poesia brasileira a outros rincões, também o intercâmbio diplomático (Vinicius de Morais, João Cabral, Murilo Mendes e Alphonsus de Guimarães Filho atuando no exterior, e Ungaretti dando aulas em universidades brasileiras). Só a partir daí a poesia brasileira passou a ter uma exterioridade. Temos de reconhecer, portanto, que o Concretismo, aliado aos movimentos periféricos como a práxis e o poema-processo, além de atribuir essa exterioridade à poesia brasileira, fundou a plasticidade e a poeticidade do verso sem a necessidade da excessiva paisagem, dos símbolos, da contestação. A frase não seria mais a mesma. O formato do livro, para comportar o novo poema, não podia ser mais só retangular. O Concretismo, aberto o portal do novo século, não tem mais importância como prática poética, apenas é a porta aberta para inserção de justeza ao verso, mesmo quando este quase inexista.
Mesmo nada sendo derradeiro, será que há um novo processo poético na poesia latino-americana? Com tantas vertentes, será que há retrocesso? Como não vivi a tradição do Barroco, tenho procurado um verso de pós-vanguarda, em que as palavras não tenham necessidade da interferência de muitas sinalizações. Grande parte da poesia brasileira, que tem valido como cânone, tem se preocupado com um certo realismo do fragmento, onde no poema saltam apenas situações impenetráveis. Não me satisfaz mais uma poesia de um conteúdo específico, ou de fragmento realista. Se tiver de ser impenetrável, que seja pelas próprias referências da língua e não através do isolamento de fragmentos da memória pessoal. Dentro da fragmentação do pessoal, a poesia deixa de existir fora do centro do próprio poeta, principalmente numa época cultural de predomínio do visual, em que não ficam claras as experiências culturais com a palavra escrita para desmembramentos de significados que não nadam na superfície. E acredito que é na fundação destes novos parâmetros que temos de levar o nosso diálogo a termo.

Victor Sosa: A poesia concreta foi uma continuidade do espírito modernista que se viu eclipsado pelo conservadorismo da Geração de 45. Foi, também, uma maneira de pôr em dia a poesia brasileira diante do desenvolvimento e industrialização que marcaram as grandes urbes (principalmente São Paulo), na década de 50. Disso já sabemos e soa retórico repeti-lo aqui, mas repito-o para enfatizar a especificidade brasileira, já que em toda América Latina (e nem é preciso falar dos Estados Unidos) se produz um grande crescimento urbano e industrial na década; no entanto, nem na cidade do México, nem em Buenos Aires nem em Lima (tampouco em Nova Iorque) se produz um movimento poético da importância programática que teve o Concretismo. Novamente, as condições histórico-sociais não explicam a arte. A existência e a inteligência dos irmãos Campos, Décio Pignatari e alguns outros, possibilitaram a criação do Concretismo e sua importante ramificação em outros poetas e poéticas, inclusive além do Brasil. Como toda vanguarda, o Concretismo, principalmente na etapa heróica, definhou por intolerância e dogmatismo: reflexos condicionados que repetiam uma gestualidade proveniente dos futuristas e construtivistas russos e desse fabbro chamado Pound. Sem dúvida, é enorme seu legado poético; os concretistas nos fizeram ver ou re-valorizar a importância da linguagem como estrutura concreta, sua objetividade, sua sonoridade, sua espacialidade sobre a página. Muitos de nós, poetas que cresceram ao longo da década de 70, não podíamos evitar (melhor, víamos com sumo interesse) as ressonâncias que nos chegavam do Brasil e, fato importante: o Concretismo encarnado nas músicas de Caetano Veloso e nalguns outros tropicalistas que experimentavam e inovavam a MPB. Essa relação entre alta cultura e cultura popular sempre me pareceu admirável e muito específico dos brasileiros, nada parecido acontece nos países hispano-americanos. Em suma: odiado, admirado, criticado, negado, o Concretismo continua sendo uma referência central quando falamos de poesia brasileira e é presença em muitos poetas e poéticas que poderíamos denominar de pós-vanguardistas.
Penso em Leminski, em Glauco Matoso, em Arnaldo Antunes, em Wilson Bueno, em Cláudio Daniel, em Ricardo Corona, em Rodrigo Garcia Lopes, entre outros. Poetas e poéticas dissímeis, mas que provém ou transparecem uma raiz comum. O Concretismo, como um vulcão, fertilizou o terreno da poesia brasileira e estamos vendo e desfrutando esses frutos. Acredito que hoje, no Brasil, está sendo escrita a melhor, a mais vital e propositiva poesia do Continente. Sem sectarismos nem planos pilotos, os poetas pós-vanguadistas assimilam, reciclam, se apropriam e criam um discurso híbrido, uma mestiçagem estilística que passa pelo neobarroco, o uso do portunhol e a ruptura dos gêneros. A co-habitação na diferença é uma das características mais saudáveis dos tempos que correm e essa atitude define, também, o fim da era das vanguardas que no Brasil teve seu momento mais “puro” com os poetas concretistas. Outro sintoma dessa saúde se vê nas muitas publicações de qualidade que, de uns tempos para cá, têm surgido no Brasil: et cétera, Oroboro, Coyote, são, entre muitas outras, algumas das revistas especializadas ou que dão grande importância à produção poética. Esse fenômeno é quase inexistente no resto da América Latina.

Salomão Sousa: Só a pós-vanguarda não arremata as vertentes da poesia brasileira, que vive, atualmente –e sempre foi assim, basta lembrar Auta de Souza, Sousândrade, Kilkerry, Sosígenes Costa, Zila Mamede, José Godoy Garcia–, peculiares situações periféricas, a maioria ainda rejeitada por ter atuado na província. Mas como lembra de forma correta Paulo Henriques Britto, em entrevista recente, há pluralidade de linguagens, mas acabaram as divergências, pois essas linguagens não mais obrigam os poetas a se firmarem em grupos ou a renegar correntes divergentes. Os suplementos e as revistas em circulação não fermentam nenhuma divergência ou vontade de definições mais ousadas. Sem que haja definição crítica, –há muito mais preocupação em saudações de compadrio–, há espaço para neo-simbolistas, numa lembrança rápida: principalmente em Goiás, com Valdivino Braz e Delermando Vieira; do maranhense Luís Augusto Cassas e do amazonense Aníbal Beça, que também se ajustam ao neobarroco e ao lírico modernismo. Espaço ainda para revitalizadores do Modernismo, com muita acolhida na grande imprensa, oriundos da poesia marginal –saudosistas de Leminski– e seguidores de Mário Quintana, Manuel Bandeira e Vinicius de Morais, além de reflexo da fluência de Fernando Pessoa em nosso meio acadêmico. E esses representam parcela significativa dos novos poetas brasileiros, exemplos podem ser encontrados em Chico Alvim, Nicolas Behr, Carpinejar, Ana Miranda, e tantos outros. Mas esses caem em lugares comuns, ou em flexões óbvias de situações do cotidiano. Os versos de comunicação explícita, só que de poética inconseqüente – veja em Ana Miranda: E Jesus desceu da cruz/para nos salvar. E ela, que pesquisou tanto a obra e a vida de Gregório de Matos, detinha grandes chances de ter se aproximado da vanguarda do neobarroco. Até uma poeta veterana como Adélia Prado –filha tardia do modernismo– se viu chamada a descambar para a “epifania”, comprometendo aquele fluxo inicial de galante lirismo e realidade, levado com justiça ao pedestal por Drummond. Há, ainda, espaço para aqueles que regridem para espaços formais já encerrados com a Geração de 45, como é o caso de Alexei Bueno e Bruno Tolentino. O grupo que transita em torno da revista Inimigo rumor e da Editora 7 Letras, com liderança de Carlito Azevedo e Ronaldo Polito, quase sempre pratica um modernismo minimalista, com impenetrabilidade, apesar de não tender para o surrealismo. Destaques merecem Micheliny Verunschk, Eucanaã Ferraz e Cláudio Daniel, que animam esperança para equilíbrio entre a tradição e a pós-vanguarda. Há juventude poética na jovem Verunschk, e certamente sua poesia logo alcançará resistente arcabouço formal. Há espaço para rebeldias líricas, em vozes femininas, aqui pode ser destacado com pertinência o lugar cativo alcançado por poetas como Orides Fontela, Hilda Hilst, Marialzira Perestrelo, Yêda Schmaltz e, no minimalismo zen, Cristina Bastos. Situação peculiar é a poesia de Iacyr Anderson de Freitas, que transita entre o classicismo e a pós-vanguarda lírica. Junto com Paulo Henriques Britto e Marcos Siscar, Iacyr redireciona a poesia brasileira para uma linguagem convincente, animadora de crítica, inventividade e emoção. Pois não basta ser herdeiro das vanguardas, do Modernismo, do Barroco e das vertentes do surrealismo. Não é necessário transgredir, mas progredir dentro da língua, nas possibilidades sonoras, significações, abundância de aliterações, sempre aliadas ao bordado das questões sociais, riqueza dos costumes, sincretismos religiosos, volume dos vocábulos que saem da natureza e desses sincretismos. Há displicência na maioria dos poetas brasileiros atuais –e eles poderiam se espelhar nos exemplos dos modernistas e dos concretos– quanto à compreensão de sua herança cultural e a definição de uma poética para uma postura produtiva a esse pós-tudo.
Saudável que o diálogo sobre a poesia seja sem fim.



















Poema de Victor Sosa
Tradução: Salomão Sousa

Deixar de ser: sair
Não ser mais o pássaro na rama
nem a rã em sua lama; ser a pedra
de toque voraz, pedra rodada
pelo mundo: canto; não ser
mais a pedra ser a árvore presa
à curva terráquea, árvore
votiva, cheia de pássaros vazia de copa
árvore que fala em sussurros; não ser
mais a árvore ser o fruto
da estação que se anuncia, fruto
do trabalho e fruto proibido
do prazer; por exemplo: essa maçã
no sexo da garota; não ser
mais o fruto ser a garota
que olha na janela, o que olha a garota?
olha as costas da Argélia, olha as Costas do Marfim
olha! ali vai Ulisses; não ser
mais a garota ser Ulisses, ileso
de sereias em sua Ítaca; não ser
mais sua Ítaca ser Minotauro sem medo
e ferir a virilha da moça inglesa
que pode ser Ariadne, que pode ser o pássaro
quetzal ou Quetzalcóaltl, o deus que disse adeus
porque deixar de ser é ser como ele: se passar
por colibri e não se passar pela noiva
não pensar em Esperança quando chegar
a desesperança, e é certo
que a desesperança chega já que é afluente
é dilúvio e é pranto militar; deixar de ser
será desfazer o poema em seu iglu
declinar Juana de Ibarbourou, saudar
sobre a ponte do Brooklyn com a esquerda
e benzer com a direita; será
não dar as horas a César; dar graças
e fechar o serviço.

Deixar de ser: caminhar sobre as águas.


Poema de Salomão Sousa

àqueles que não acreditam
que habitarão as noites
àqueles que habilitam
as cercanias do vazio
não falarei de urtigas
não direi que vi
as galhadas das murtas ao sol

aqui está a língua
que dá gosto às palavras
e não ficarão mudas
as traças dentro dos ossos
não direi que vi as gargalhadas
de membrudos inimigos

não direi que aos seus ombros
encostei a dor e deitei a luz
ainda que as noites insistam
as asas das peçonhas
deixo a sabedoria do orvalho
que dá bravura às raízes secas

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