terça-feira, 27 de março de 2007

Luiz de Aquino

Proseando com o poeta

Salomão Sousa escreveu um belo poema, entre tantos outros belos, sob o título "Dar-se aos pregos e às léguas". Deliciei-me das fincadas e andanças do vate da histórica cidade de Bonfim (que o mau gosto de uns poucos, há mais de meio século, transmudou em Silvânia, sem que a bucólica cidade perdesse o encanto). Ele encerrou o poema com essa estrofe:"...perder-se para nascernas flores e nos olhos da terranão ser o ferrolho inchadoo caruncho na madeira das íris"Falei-lhe do meu encanto, e ele retrucou, em mensagem fraternal: "As nossas viagens são as mesmas, com as mesmas íris e o mesmo sol, o mesmo terreiro de chão goiano. O difícil, para nós, é abrir porteiras para fora de nosso rincão. Vamos manter viva a nossa infância, senão perdemos a nossa rebeldia."Perdemos, não, poet'irmão! Não a perdemos, pois exercemos essa teimosia de menino birrento, daqueles a quem os castigos da sobremesa não atingem, porque havia os quintais de múltiplas frutas, nem o cerceamento da liberdade por algumas horas, porque os córregos da meninice estavam ali, "de grito" (*); a toxina dos defensivos ainda não exterminara as piabas que colhíamos em anzóis miúdos, em linhas curtas de varas de bambu. Nosso grito de pirralhos embirrados ecoa não no espaço entre paredões, mas na lonjura do tempo que enevoa nossos cabelos e esturrica nossas peles. E que revéis, somos nós! Crescemos sob o tacão de um regime duro e cruel, mas não esmorecemos; não nos dobramos, como os caniços que nos valiam por varas de pesca, mas não enraizamos tanto que a ventania nos arrancasse do chão benfazejo. Altivos e livres, fechamo-nos por horas em leituras perigosas, mas capazes de nos fazer cidadãos. Cidadãos poetas, porque sem poesia não há liberdade (que o digam Agostinho, de Angola; José Martí, de Cuba; Federico G. Lorca, o espanhol; e Castro Alves, o nosso). Vimos Godoy Garcia, José Décio Filho, Ieda Schmaltz e Afonso Félix de Sousa a gritar por nossa gente ante o arbítrio; vimos José J. Veiga e Bernardo Elis a prosear coragem na escuridão ante as idéias não permitidas. Deles herdamos a bússola dos inquietos, dos insatisfeitos e insurretos. Temos sangue, Salomão, para a justiça decantada, sonhada e mal-exercida; sangue que tinge nossos solos e põe sal no nosso suor de andarilhos das letras. Deixamos que os dias polvilhem de lembranças nossas almas doces e ingênuas, mas bravas o bastante para não se curvar. Temos as cores das areias da Serra Dourada, o vigor das pastagens na vertente do Piracanjuba e o calor termal da Serra de Caldas, acalentado em serenatas de Pirenópolis e dourado de pôr-do-sol de qualquer paragem Goiás. Comemos pequi e genipapo, ingá e guapeva; bebemos cachaça quilombola; dançamos pagode de roça, dançamos catira e, se deixarem... Bem, se deixarem, contamos histórias de medo ao fogo do borralho, em noites de chuva. Mas não deixamos, não mesmo, de cantar poesia. Como não se fazer poeta sob o céu deste Planalto do cerrado, siô?
Luiz de Aquino jornalista e escritor.

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