terça-feira, 27 de março de 2007

Ana Maria Ramiro*

Ruínas ao Sol: alegoria e subversão na obra de Salomão Sousa

"As alegorias são no reino dos pensamentos
o que são as ruínas no reino das coisas".

(Walter Benjamin)


Da mesma forma como respiramos sem ter, na maioria das vezes, consciência de que o estamos fazendo, também somos levados, na rotina imposta pelo cânone já desgastado, a uma leitura embotada, automatizada, da obra literária, uma vez ausente o estranhamento, elemento fundamental e definidor da invenção poética. É a partir da desfamiliarização da linguagem, desse dito estranhamento, que renovamos nossas reações e sensibilidades habituais e adquirimos uma consciência dramática da linguagem, tornando-nos mais auto-conscientes do processo criativo.

Ruínas ao Sol (editora 7Letras), do poeta goiano radicado em Brasília, Salomão Sousa, vencedor do prêmio Goyas de Poesia de 2006, é um desses exemplos de obra renovada/renovadora, ainda raros no atual cenário poético nacional, e que levam o leitor para além da visão estático-linear, estimulando-o a vôos mais altos, a experiências poéticas mais profundas, através de um vasto jogo especular formado por fragmentos de imagens menores, à maneira de um pictograma.

Esta exuberância imagética, conseguida por meio da proliferação de significantes, bem como o emprego da tautologia estrófica ("Alimentamo-nos do mesmo sol e estamos sós/ Alimentamo-nos do mesmo sol e estamos sóis") e terminológica (gomos, tempestades, lenhas, desterros, estradas...) reiteram, como peças de um quebra-cabeça, o pendor fragmentário da obra ("Motivos para tecer o corpo/com pequenas sementes/matizes de feixes de anil/com o secreto desalinhar do novelo/das pequenas aranhas"), exigindo uma leitura em filigrana para total cognição do subtexto e interpretação do discurso poético.

O Sol, elemento simbólico por excelência, fonte máxima de calor e gerador de vida, é mimeticamente identificado com o signo lingüístico ("Só o que virar girassol/ só o que couber na palavra") e será uma das alegorias responsáveis, se não a principal, por reforçar o caráter dinâmico e subversivo da poesia de Salomão e de sua ars poética ("estarás em qualquer/ ilegível estrela ou estrada/ irei recolhendo tuas roupas/ toda em rasgos/ só eu posso te encontrar/ no instante em que fores louca"). O termo estrada também vai encontrar um correspondente sintagmático na idéia de trajeto, direcionamento ou linha (verso) e a própria epígrafe ao livro, do poeta sufi Rûmî, vai corroborar o teor alegórico e incitador da obra ("e vem o sol clarear minhas ruínas").

Esta citação constitui ainda a chave que revelará os artifícios de chiaroscuro e trompe l´œil, que permeiam o livro. Para Rûmi, na tradição mística do islã, o que existe, para além de todas as ilusões, é a unidade. Para ele, por exemplo, as cores enquanto símbolos da multiplicidade constituem uma ilusão, pois a realidade não tem cor e para ela, todas as cores retornam ("Mas quando a noite vela essas cores de ti, percebes que só são vistas por meio da luz"). É na intertextualidade (e aí, o escopo é grande, com referências clássicas, passando por Rilke e chegando em João Cabral e nas novas vertentes literárias), que Salomão se escora para desmascarar o próprio simulacro a que se propôs. Alegorias aos pedaços, ciclos de dissolução e florescimento, ruínas que na verdade buscam o seu antípoda, a reconstrução, o que Severo Sarduy denominou como "facetas de uma franja torcida sobre si mesma".

Ruínas ao Sol revela-se sobretudo como um manifesto contra o marasmo e a banalidade no fazer poético e condensa o engajamento estético do autor para com as constantes e renovadas apreensões artísticas de seu tempo ("Está morta a dinastia/de quem aguarda/sentado na soleira/ A lenha das palavras/ acende a festa/ na beira do meu pasto"), afinal em sua própria concepção, o poeta deve passar pela modernidade de seu tempo, pois a sua poesia tem que refletir o somatório da encruzilhada de suas experiências com as da sociedade em que se encontra inserido ("Sem intimidade com a natureza da vida, a vida fraqueja, a humanidade vira pó"). O novo livro de Salomão Sousa ilumina como uma pequena jóia emblemática, mas mais do que emblema, é um corpo vivo, palavra latente. Comova-se.

Ana Maria Ramiro, poeta de Brasília.

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