terça-feira, 27 de março de 2007

Ligia Cademartori

Força de imagens
Especial para o Pensa do Correio Braziliense

Na primeira composição do livro Estoque de Relâmpagos, de Salomão Sousa, o uso de aliterações — repetição de fonemas semelhantes — mostra cuidado com a sonoridade dos versos. Mas logo fica evidente que a particularidade de sua poesia não reside nos efeitos de som e, sim, na organização das imagens. A profusão delas provoca o leitor para que procure as relações que estabelecem e, por esse modo, descubra a mitologia autoral que as ordena. Ao extrair força poética do substantivo, Salomão Sousa compõe sua própria lição de coisas. Nem todas imediatas, é verdade. Algumas são inalcançáveis. Mas, no radical contraste entre certas imagens pode-se encontrar essenciais efeitos de sentido e o provável princípio que preside as expressões figuradas. Pois a linguagem não faz concessões. Concisa e avessa ao vôo livre, essa é poesia de linhagem auto-reflexiva.
O encadeamento de imagens, para muitos poetas, é mero jogo com o significante, quase um brinquedo. Não é o caso de Estoque de Relâmpagos. Nele observa-se dupla tendência. Uma, em direção ao cósmico, ao telúrico. Outra, ao nada, ao silêncio. Mira a grandiosidade, o espetacular, mas acolhe as faltas e as insignificâncias.
As composições sucedem-se sem títulos que, de algum modo, direcionem a leitura e cumpram a função de marco divisório. Deve-se prestar atenção a esse fluxo que tende a transbordar as margens habituais. O jorro de versos desafia as pausas e desestimula as interrupções. É como se fosse um único poema extenso.
No entanto, entre um poema e outro, há mudanças de tom e ritmo. Algumas, abruptas. Aqui, um discurso retesado a que servem consoantes oclusivas. Mais adiante, chega-se próximo à rarefação lírica. Às vezes, o peso do deserto desaba sobre o corpo. Noutras, ‘‘há tílias verdes esbarrando na aurora’’.
O estilo é modulado, embora prevaleça a condensação. Poeta sem derrames, demonstra respeito pela potência da palavra. Em versos livres, enumera a heterogeneidade dos elementos que compõem um mundo que pode ser adverso, mas não insuportável. O desafio, agora e sempre, é o sentido. Dele o poeta faz recortes com estilete ou cunha.
Como prenuncia o título, relâmpago é imagem recorrente nos poemas. A fulguração entre nuvens, clarão intenso mas breve, ao ser reiteradamente evocada, faz-se chave de leitura. Essa significação ascensional e luminosa, porém, tem seus contrapontos. Entre eles, o escuro seria o mais óbvio. Mas, mais elucidativo, talvez, seja levar em conta outro elemento também freqüente no imaginário poético. Como a madeira, tantas vezes evocada, que esteja em tora ou lascas, é sempre matéria sólida, tangível, duradoura. Mediante as duas imagens opera-se confronto entre fogo e terra, distante e contíguo.
A tensão, se não se esvai, encaminha o poeta a uma aprendizagem: ‘‘Posso esbarrar no escuro do silêncio de onde foram retiradas todas as aparas sem sair lanhado’’. E, provocando associações com a adaptação e a resistência da madeira, conclui: ‘‘Onde foi cortado todo amparo — ali posso me encostar todo em talhas’’. Há fecundidade nesses versos, ímpeto poético que percorre via mítica.

Ligia Cademartori é doutora em teoria literária e autora de Períodos Literários.

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