terça-feira, 27 de março de 2007

Ronaldo Costa Fernandes

A força da poesia de Salomão Sousa

De temática mista, Ruínas ao sol (editora 7Letras, 2006), de Salomão Sousa, mescla as expressões da vida moderna com palavras, hábitos e elementos da vida rural (“safra quebrada nas lâminas”). Não é, contudo, uma poesia rural. Pelo contrário, utiliza-se de alguns componentes rurais para esculpir obra singular. Salomão Sousa utiliza-se de linguagem pessoal e demonstra não ter influência forte ou deixar-se levar para uma “imitação” das grandes linhagens da poesia brasileira. Este é um dado inusitado na poesia brasileira, onde se percebem claramente as influências e tendências do poeta. Há uma sucessão lógica e imagens curtas, mas que carregam consigo um universo imagético muito mais amplo e audacioso. Não existe lugar-comum, e a dicção sólida e unificada, sem perda de ritmo. Sobre o ritmo, pode-se assinalar que o poeta o mantém de forma contínua, sem quebra da harmonia inicial. Não há desnível entre os poemas (na verdade, o livro parece compactar-se num longo poema-rio), o que lhes acrescenta mérito. Este livro aponta para uma madureza do poeta. Acredito que a constância e a coerência ritmo-conteúdo-linguagem demonstram que Salomão Sousa é um poeta que domina sabiamente o árduo ofício. Livro de difícil deciframento, volume denso, não chega, contudo, a ser um livro hermético como um Invenção de Orfeu. Exige, entretanto, leitura e releitura. E é na releitura dos poemas que se descobre tema, conteúdo e a formulação intrigante com a qual o poeta trama sua poética. Imagens como: “heras de seus braços”, “renúncias dos horizontes”, “dormências dos rios das lontras”, “as moscas da febre, ruínas nas portas do advento”, “esterqueiras das incertezas”, entre inúmeras outras construções, reafirmam o cuidado com a elaboração poética mais exigente. Aqui não há o lirismo fácil, mas a construção exaustiva de poetas laboriosos. Observa-se trabalho formal na formulação temática e na escolha especular do vocabulário. Desde os motivos para “iludir a morte”, dos pequenos “dos lábios nas bocainas do engenho” até uma maior como “o empenho em desligar as ogivas”, percebe-se que não há gratuidade no jogo de palavras, o que se tornou, abrindo um parêntese, uma constante na poesia brasileira encantada apenas com a sonoridade práxis e concretista injetada na nossa recente história literária. Salomão Sousa é um poeta com boa trajetória. Estreou com a publicação de A moenda dos dias (1979). No ano seguinte, acopla A moenda dos dias a outro livro intitulado O susto de viver, num só volume, publicado pela Civilização Brasileira. Em 1986, aparece seu terceiro livro de poemas: Falo. Sete anos depois, vem a lume Criação de lodo e, em 1994, publica Caderno de desapontamentos. Em 2002, sai Estoque de Relâmpagos, livro premiado pela Secretaria de Cultura do Distrito Federal. Sempre experimentando, buscando novas formas de expressar-se, Salomão alcança com este Ruínas ao sol o prêmio nacional do Festival de Poesia de Goyaz. É uma dicção distinta das manifestações poéticas dos outros livros, embora se possa rastrear nos livros anteriores a estrada em que Salomão Sousa está empenhado em trilhar no seu caminho poético. Logo de início, Salomão nos avisa de forma não intencional de sua poética: a mescla do degradado com o sublime: “reservas de estrume guardam cores”. Embora inicie com um aviso também de derrota, Ruínas ao sol é um livro em que a visão otimista se sobrepõe à visão derrotista. “Depois das derrotas, dos desterros, das ruínas brocados de vento já chamam dos horizontes reservas de estrume guardam cores daqui se vai para as aventuras” E, dentro do parâmetro derrota/superação, outro par semântico assemelhado se apresenta constante: o órfico, a vitória da vida, x o tânatos, a derrota e a morte. Oposição em que sai altaneira e dionisíaca a preponderância do sim vital, contra o não mudo da morte. Assim, signos positivos se acumulam frente à derrota dos pântanos, quedas e guerras: janelas abertas, cios, portas do advento e bons desejos. São várias e alvissareiras as imagens transmudadas ou explícitas da positividade: “Mas não haverá a guerra dos cem anos/ mas janelas abertas, a retirada dos vazios”. A primeira tensão existente e nuclear entre campo e cidade, natureza e cultura, barbárie e civilização, percorre todo o livro. Antes o culto se apropria do natural e transforma-o em elemento poético e erudito. Salomão Sousa não é o aedo do bucólico, o bardo do melancólico mundo perdido, o paraíso da infância ou o ideal mundo da natureza rural com seu linguajar próprio e muito arraigado às tradições e conservadorismo. O rememorar alambicado geralmente incide na fixidez de um tempo sem mutação e, logo, um tempo estático, não real, idealizado e, quase sempre, ou infantilizado ou imune às transformações do mundo contemporâneo. Há um elencar de metáforas campestres, como dissemos, mas a poesia de Salomão Sousa não é passadista nem rural no sentido de tratar do campo como tempo imobilizado ou saudosista. O campo está ali como contribuinte metafórico e emblemático de confrontos de vida x morte (sol x ferrugem). Há também uma expectativa de algo futuro. Em toda a poesia, o poeta parece alertar o leitor da “nesga de neblina” que leitor e autor atravessam, embora haja “intrigas guardadas em curtumes”. Também a existência de perigos não visíveis. O poeta sente-se quase na obrigação do alerta das intrigas – intrigas do tempo, da vida e da morte. “Na nesga de neblina atravessamos As intrigas guardadas em curtumes Ali florescem pústulas, pensamos em lugares ao sol e estamos vesgos As perdas desconhecem nossa porta Na barreira dos Ventres aguardamos sem que o porte dos numes nos conforte Passos em falso anda a sabedoria enquanto eles não nascem, os homens nus Ao sol, trevos despertos, pertos cumes! Na terra dos Ventres não nasceu a morte também a dança da peste inexiste Damos velas às nossas vigílias Com os idílios dos erros nós remamos” Embora alerte o leitor para o seu “desembarquei-me das incertezas?”, o poeta é um poeta do conhecimento. Não faz uma poesia epistemológica, ou seja, aquela que descreve fenômenos e tenta entendê-los – como um João Cabral, entre outros. Mas busca entender o descontínuo da existência, a dubiedade e ambigüidade do estar no mundo, não se recusa a participar da vida (“mas não ser no cerne a certa traça/mas não ser a mão que traça a retirada”). As viagens, símbolo de fuga e escapismo, aqui são resistência e permanência da positividade do ser (“saber da secura/há as paisagens”), embora reconheça o conflito de “içar velas” e “pés trançadas” que cria o confronto (p. 21) resolvido a favor da vitalidade e do futuro. Ruínas ao sol já é em si um conflito, pois que a primeira palavra aponta para o passado, a derrota, o vivido e a segunda palavra indica vigor, presente e poder de dar a vida – o sol. Mas o sol pode ser também cáustico quando ilumina o passado que foi grafado na pele (“Ao sol as ruínas da pele”, p. 22). “Abra janelas acenda candelabros”, da página seguinte, é uma vocação para pólo positivo, para o sol polissêmico e não para a ruína devastadora e negativa – já que até as ruínas são iluminadas. No poema da página 23, o poeta aponta para o futuro, “aprendiz de não saber voltar”, logo transformando a ruína em algo presente e apela com vigor para seguir em frente, lá onde está a solução do eterno conflito. Estará? No poema “Navego e o mundo é onde estou”, há dinamismo, mas este primeiro verso do poema mostra um paradoxo entre fixidez x estático. O poema apresenta o enraizamento não apenas no locus, mas em si mesmo – o poeta navega dentro de si mesmo. Portos, tálamos, goivos podem ser entendidos como objetos do estático que convivem com nautas, águas, navegar, jias, garotas indo sem rumo. Outra prova do conflito e paradoxo que não leva a algo “barroco”, mas a uma definição já especificada pela positividade e fé no futuro, está no poema da página 26 (“sossego do fogo” e “a mão fervente das gemas do sossego”). Logo, sossego aqui aquece e queima, ou então, fogo aqui não ameaça, “pois as ruas terão festa” e mão fervente também não agride, pois pertence ao espaço poético da gema (criação) do sossego (mansuetude). Logo a seguir, dentro deste mesmo plano de idéias, o poeta arremata o poema: “Não sou as águas”: “eu sou as trevas e clareias”. No poema borgiano “A lua vigia a viagem”, onde inverte quem vê e quem é visto, existe um pouco do quadro Las meninas, de Velasquéz. Um belo poema, delicado, diferente das imagens fortes e contrastantes dos outros poemas, este “A lua” é quase um conto árabe e o verso “Desarreia as mulas / que patearam a lua / no espelho das poças” lembra o “La luna vino a la fragua con su polisón de nardos” do cigano García Lorca. Esta lua tão cara aos poetas ao longo da história da poesia (v. Borges e sua conferência sobre a Metáfora, em Esse ofício do verso) se ilumina os passos da mula, do viajeiro e do menino, também, num raro poema nebuloso, o poeta aponta para a singular imagem do escuro existencial: “Também não há lua / na noite dos pensamentos”. Há, contudo, poemas em que o paradoxo ou conflito não se instala e o poeta afunda-se na desesperança de “terra derrotada”. O diabo é que não se pode falar de terra derrotada sem lembrar de T. S. Eliot. Mas, Eliot à parte, estas “raízes repetidas / por sopros adiados” é vítima da repetição, da rotina e dos atos mecânicos e vê que mesmo não vindo tempestade “não bateu a nova aragem”. As palavras se repetem na roda semântica, onda após onda, e chuva após chuva, “nas ramagens nunca renovadas”. Mesmo neste tipo de poema (p. 39), o poeta ainda reacende a velha chama do desejo: “venho às ruínas desejar”. A tempestade perpassa alguns poemas, ora mostrando face de destruição, ora de renovação. É um signo de transformação de que deseja derruir para reconstruir. É preciso inventar a tempestade como símbolo do remexer universal. Ao fim e ao cabo, a tempestade “espalha o amor onde o sol trabalha”. Embora no poema da página 53 afirme que existe “um dardo de dúvida”, o que é mais certeiro e alvo é a negação dos símbolos positivos como estar “perdido de constelações” – natureza astrológica e natureza ambiental norteiam esta poesia de Salomão Sousa. Mas, mesmo assim só o que o salvará é a lua, mas, observe-se, “lua fora de estação”, logo o esquerdo, o lado inusitado das coisas. “e este dardo da dúvida e esta lâmina da dor e esta noite sem lírio lanham minhas nádegas desequilibram minha astúcia e os poços das ausências estou perdido das constelações e perseguido pelo deserto dos famintos cascavéis só uma lua sem a flor das águas arrancará do frio as minhas raízes derramará mares nos meus vazios só uma lua fora de estação fora de órbita de todo planeta vai me arrancar dos dentes do martírio” Poeta de convocatória, deixa escapar sua profissão de fé e, mais que sua poética, sua dolorida existência, ao convocar “crianças” (o lado inocente, ilógico e lúdico) e “lagartos” (rastejante poesia, que vai entre brechas, que sobe a parede do absurdo poético) para por fim (p. 60) apontar a poesia como resistência e fuga: “afugentar o bicho da espessa solidão”. Este poeta, tomado de “horto de espelhos” não é um narciso ou um solipsista. Quer participar, embora seus ombros não suportem o mundo, não se debruça na janela para observar o mundo, quer “a lenha das palavras” que “acende a festa”. É por intermédio do fogo das letras que reinventa sua participação na vida ordinária. Este ser plural – urbano/rural; solitário/coletivo; estático/movente – busca fênix de ser e de estar no mundo: “perder-se para nascer”. Logo o nascimento é conseqüência não de uma aventura do acaso, mas longo labor existencial e poético. Salomão Sousa não é poeta de palavras frouxas. Para construir sua escritura, há de trabalhá-la como o camponês com seu arado emprenha a terra de suor e semente. A presença materna é uma constante na poesia de Salomão. Seja apontando rumos, seja rememorando a infância ou o tempo perdido. A figura da mãe – aí incluída a mítica mãe terra – deveria ser melhor e mais longamente estudada, ficando aqui apenas o registro de uma figura que aponta estradas candentes (p. 70), ou seja, prefigura o rumo. Persistem em sua poesia as vinte simples palavras com que João Cabral construía seu verso, mas mescladas com palavras de uso ordinário: artemísia, leivas, zimbro, lianas, curiangos, atilhos, chavascal etc., geralmente ligadas à vida/natureza do campo. Há a promessa de ofertas de úberes: o rego cheio de peixes, chávenas de prata, montanha cheia de córregos, quando o poeta não apenas se satisfaz com uma visão promissora, advinda de uma dialética entre a negativo e o positivo, mas como ser superior que pode, num passe de mágica poesia, oferecer raízes, o úbere, lenda, sêmen, punhos fortes. Dentro da mitologia particular de Salomão Sousa (v. Octavio Paz, Os filhos do barro) há esse poder de dádiva que, sem declarar, só poderá advir de uma poderosa oferta que é a única em que o poeta pode fazer-se generoso: a palavra. Autor do livro A Moendas dos dias, vira e mexe o poeta tritura suas imagens cruas, rurais ou não, de natureza ou do espírito, embora sempre lembre que, ao lado da existência devastadora do que destrói e destroça, “há doçura” (p. 80). Salomão permanece no conflito: na ânsia de busca entre o que está moído, o que pode se aproveitar de humanismo, e a permanência – a doçura dos confrontos, “a flor no impacto enfurecido do vento”. Já poeta maduro, senhor de sua escritura, do verso terso, Salomão soma mais um ponto em sua trajetória. De forma contida – e por vezes cifrada, o que aguça o desafio de reconstruir o derruído pelas imagens fragmentárias –, o poeta alcança expressão própria, em meio a uma enxurrada de poetas prosaicos e de ditos chistosos, ele, que, em vez da leveza de um origami, coloca-se diante da massa bruta e agigantada de um elemento da natureza – bronze, mármore, ferro – e não teme o trabalho fabril de talhar sua poesia com metáforas que martelam, açulam e desafiam a figura exuberante que nascerá inédita: a poesia de Salomão Sousa é obra talhada a ferro e fogo, a moenda e susto, a esperança e sob o mais rigoroso lirismo para vencer a blandícia dos versos frouxos de cada dia.

Diálogo com Victor Sosa

Apresentação de Ronado Costa Fernandes

Aqui o leitor terá uma visão de duas literaturas de herança ibérica. Dois poetas se propõem a discutir a contribuição que Espanha e Portugal propiciaram às literaturas em novo solo americano. Um brasileiro, Salomão Sousa, e outro, o uruguaio-mexicano, Victor Sosa. Não somente os igualam a força de suas produções poéticas e nem a coincidência dos sobrenomes (Sousa/Sosa), mas a preocupação com a visão crítica da produção do passado e do presente na América espanhola e no Brasil.
Ainda que não abone algumas nomenclaturas por eles aceitas, não posso deixar de reconhecer a força de seus argumentos e a argúcia de suas análises. Para mim, o termo pós-vanguarda não se enquadraria muito ao Brasil – prefiro o corrente pós-moderno. Há sempre de lembrar que a palavra modernismo corresponde nas duas línguas a manifestações distintas. Na espanhola, refere-se ao parnaso-simbolismo de Rubén Darío e, para nós, diz respeito justamente à nossa vanguarda do princípio do século XX com Mário e Oswald de Andrade. Quanto à expressão neobarroca (brilhantemente analisada pelo cubano Severo Sarduy), a mim me parece mais uma manifestação da transição entre modernismo (na expressão brasileira), declínio das vanguardas em direção às manifestações da pós-modernidade (aí incluiria também o nosso Guimarães Rosa e, talvez, Autran Dourado, entre outros brasileiros).
Há bastante curiosidade neste diálogo literário: de um lado, observa-se o orgulho da literatura de língua espanhola que tem o poeta Victor Sosa e, por outro lado, certo desconforto de Salomão Sousa com seu passado literário. Lembro que o Barroco tem uma exuberância e influência fulcral não necessariamente na tradição (já que o Barroco brasileiro foi redimensionado pelo Modernismo de 22), mas nas formas mais modernas de produção literária. E que Vieira, autor de dois mundos, é um marco em nossa literatura. E recordo que Cláudio Manuel da Costa, quando chega ao Brasil, traz consigo um traço barroco que dá à sua poesia neoclássica o tom de penumbra e dor que, se alguns o vêem como apenas transição, percebo-o como um grande poeta angustiado pelo seu tempo e miséria humana.
Não me alongarei, porque a mim me cabe apenas apresentar os dois poetas que, pela internet, se propõem a um diálogo profícuo que, como eu, fará o leitor inquietar-se e, quiçá, desejar participar pelo candente do tema e pelo prisma singular dos dois poetas. Convido os leitores a seguir a “conversa” literária de Victor Sosa, que nasceu no Uruguai em 1956 e vive na cidade do México desde 1983, e de Salomão Sousa, que nasceu em Silvânia (GO), em 1952, e está em Brasília desde 1971.
Autor de Decir es Abisinia, entre outros livros de poesia, crítica e ensaio, Victor Sosa mantém viva ligação com a poesia brasileira. Traduziu Poesía y composición, de João Cabral de Melo Neto, e tem inédita a tradução de Farewell, de Carlos Drummond de Andrade. E figura na antologia Jardim de Camaleões, de Cláudio Daniel, que acaba de ser lançada no Brasil pela Iluminuras. Também atua como professor universitário, e é detentor dos prêmios Luis Cardoza e Aragón para Crítica de Artes Plásticas (do INBA e Governo de Nuevo León); Nacional de Poesia Pancho Nácar (do Município de Juchitán, Oaxaca) pelo livro Decir es Abisinia; e menção honrosa do Ministério da Cultura do Uruguai e da Intendência de Montevidéu, respectivamente, pelo livro Los animales furiosos.
Salomão Sousa começou a publicar na época da Poesia Marginal, em Brasília, com Esbarros. Impulsionado pela aceitação de A moenda dos dias, em 1979, inscreveu no INL o livro O susto de viver, que seria editado pela Editora Civilização Brasileira. Organizou as antologias Em canto cerrado (de poesia) e Conto candango, com escritores de Brasília. É um dos 47 poetas incluídos no número que a revista portuguesa Anto dedicou em 1998 à literatura brasileira em comemoração aos 500 anos da descoberta do Brasil. Está inserido na Antologia da nova poesia brasileira (1992), de Olga Savary; e na A poesia goiana do século XX, de Assis Brasil. Seu livro Estoque de relâmpagos, de 2002, foi o vencedor do Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária da Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal. Fichado na polícia pelas polêmicas de seu zine Chuço, Salomão Sousa têm inéditos livros de aforismos, poemas e crítica. (Ronaldo Costa Fernandes)

Victor Sosa: alegra-me que tenhas gostado de meu poema (publicado no Mais!); só hoje me inteirei de sua publicação por Cláudio Daniel, que foi seu tradutor. O poema pertence a um livro que publiquei em 2000, chamado Decir es Abisinia. Publiquei dois livros depois, com uma tendência para o neobarroco, que é o que me ocupa ultimamente.

Salomão Sousa: Li outros poemas de sua autoria em páginas da internet. Confirmam a inventividade encontrada no que foi traduzido por Cláudio Daniel. Mas na poesia neobarroca – eu prefiro pós-vanguardista –, que se consolidou nas vertentes da poesia pós-moderna a partir da década de 90, os versos não se encadeiam numa sintaxe perfeita. As palavras vão criando novos segmentos frasais, com dissociação de complementos. Mas isto é passado e só podemos ficar contentes com a sua poesia. Agora, no presente. Há, atualmente, uma certa desvalorização, descrédito mesmo, para entendimento do Barroco. Como a América sofreu (tardiamente) influência do Barroco, temos a tendência de reagrupá-lo nas novas correntes artísticas. Acredito, no entanto, que seria salutar e apropriado aproximar essas novas correntes de movimentos mais evolutivos, o que daria mais credibilidade crítica às novas práticas poéticas. Como somos herdeiros, não só do barroco, mas do modernismo, das vanguardas e do surrealismo, estamos inseridos num período informe, que eu prefiro aceitar como pós-vanguarda. E isto está muito bem inserido nos seus poemas, que pude conhecer agora. Há mais elementos da realidade que da imagética religiosa. E uma busca de integração à realidade, “detesto/tanto deserto”.

Victor Sosa: Muito interessantes teus comentários a respeito de minha poesia. Por outro lado, é certo o que dizes, que no neobarroco há uma ruptura da sintaxe a partir da imantação das palavras e de certa concatenação do discurso poético. O conceito de colagem, próprio das vanguardas, agora dá lugar a uma contigüidade de som/sentido, a um fluir metonímico sinuoso que se ramifica. Isso está em Haroldo das Galáxias, em Leminski, em Perlongher, em Kozer, e em minha poesia. Estou de acordo contigo quanto a preferir o termo pós-vanguarda, que é mais amplo e indiscutivelmente representativo desta época de prefixos. No entanto, não entendo porque dizes que o Barroco foi tardio na América. No México, por exemplo, foi uma das primeiras manifestações estéticas dentro dessa coisa chamada “Identidad mexicana” (seja lá o que for isso), que começava a formar-se no século XVI. Na arquitetura, com o churriguerismo (esse barroco transplantado, ainda que nascido na Espanha, característico destas terras) e, na poesia, com Sor Juana. Nesse sentido, o neobarroco seria uma conseqüência e uma continuidade... lembrando, é claro, por isso que, de maneira pertinente, agregas: o modernismo, o surrealismo, as vanguardas. Todo é causal neste mundo, e a poesia tão pouco escapa dessa condição.

Salomão Sousa: Atualmente, no Brasil, há diversas maneiras de entendimento do Barroco. Muitos julgam que ele não foi um movimento autêntico, pois até Gregório de Matos – o expoente do período, que nasceu em 1623, mais de 20 anos após o início do movimento – teria se limitado a transplantar poemas europeus para a realidade nacional. E podemos dizer que Gregório de Matos e Antonio Vieira não estão sendo lidos – e muito menos influenciam ou teriam influenciado a poesia brasileira. As obras desses autores interferem muito mais no discurso político do que na prática poética. No Brasil, o Barroco não teve desdobramento. Não temos um escritor da estirpe de José Lezama Lima, Alejo Carpentier, Sarduy, García Márquez (na apresentação deste diálogo, Ronaldo Costa Fernandes agrega bem Guimarães Rosa, e poderíamos agregar ainda Ariano Suassuna, ainda assim ficaria faltando um nome na poesia). Se algum resquício do Barroco ficou na modernidade da poesia brasileira, ele se encontra em Murilo Mendes e Jorge de Lima, que ganham redimensionamento após a redução do crédito das vanguardas. Nunca estudei as influências dos autores estrangeiros na poesia brasileira. Mas aventuramos a dizer que o primeiro grande impulso veio de Victor Hugo, pois Castro Alves – que proclamava a presença do francês em seus poemas – é um dos mais aclamados poetas da história de nossa literatura. Portanto, a poesia brasileira demorou a afastar-se do pieguismo condoreiro, já que o seu amadurecimento só se deu com o advento do Romantismo. Até hoje se espera do poeta brasileiro que ele seja condoreiro, inflamado, de sangue amoroso, de exaltação à pátria. Esquecem que a poesia não existe para aquecer o coração, mas para enriquecer a língua, para alargar as possibilidades das palavras. No entanto, ainda existe um segmento que deve ser desligado da poesia de pós-vanguarda, pois seus praticantes se limitam a recortar o cotidiano. Trata-se de uma poesia fria, sem sonoridade, sem ligação com a realidade. Trata-se de uma poesia perigosa, que saiu da Poesia Marginal, mas sem entendimento tanto do Modernismo como das Vanguardas. Mas, Victor Sosa, por que a sua transferência da América do Sul para o México? Havia alguma busca de outra realidade? de outras poéticas?

Victor Sosa: No mundo hispano-americano, a verdadeira identidade poética começou com Rubén Dario, que soube reciclar bem a poesia francesa, sobretudo dos simbolistas e parnasianos (evitando a medíocre poesia espanhola do século XIX), e criando assim o Modernismo, o primeiro movimento poético realmente americano, que significou a maioridade diante desses venerados “pais” e “mestres” das metrópoles européias. Com Dario também se produz uma reacomodação, uma demarcação e um novo canal para a herança do barroco espanhol em nossas terras. A originalidade e a força de Dario – sobretudo dos Cantos de vida e esperanza – é enorme, e o nicaragüense terá uma inegável influência inclusive naqueles poetas fundadores da vanguarda: Vallejo, Huidobro, Neruda, Girondo (que não o negaram: “superaram-no” atendendo outros chamados do discurso poético). Não sei ou, melhor dizendo, não creio que no Brasil e na língua portuguesa tenham um antecedente desse tipo. Creio que todos nós, escritores latino-americanos, estamos em débito com Dario, incluindo Lezama Lima, Octavio Paz e muitos outros, e não me refiro a uma continuidade estilística (o Modernismo hispano-americano está bem morto e enterrado), mas, como tu dizes, para esse “enriquecimento da língua e para alargar as possibilidades da palavra”. Dario foi o primeiro a “enriquecer” e “alargar” e a levantar a voz acima dessa medíocre mimese a que estavam habituados seus contemporâneos. Foi o grande guru que insuflou a necessária confiança e auto-estima para que outros criadores abrissem seus próprios caminhos, e esses caminhos podem ser Trilce, de Vallejo, ou Altazor, de Huidobro, entre as mais imorredouras obras da poesia hispano-americana.
Quanto ao que dizes de Murilo Mendes e Jorge de Lima, penso que seu barroquismo, sobretudo neste último, passa pelos sinuosos meandros do surrealismo. Na América Latina barroco e surrealismo confluem com naturalidade, dir-se-ia que surrealismo chega para reavivar e deixar em dia a tradição barroca americana. Aí está Carpentier, e, sobretudo, Lezama, ou Reinaldo Arenas de El mundo alucinante. Trata-se de metamorfoses e de encarnações desses mesmos sopros que chegaram com a Conquista e que ainda continuam impulsionando a criação por estas terras.
Quanto à tua pergunta sobre essa transferência da América do Sul para o México, a resposta é simples: como tantos sul-americanos, coube-me viver a condição nômade imposta pela época, pelas ditaduras militares e pelas crises econômicas. Até aí tudo óbvio, sem dúvida, mais além do óbvio está o obtuso, esse escuro desejo de sair do mundo excessivamente previsível, o Uruguai, e encontrar outras realidades, outros desafios e, portanto, outras poéticas. Talvez sejam poucos os que emigram por motivos poéticos (teria que propô-los ao ACNUR – Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Refugiados), mas estou convencido que todo nomandismo, – seja imposto ou seja voluntário – implica uma mudança, uma transformação das coordenações poéticas.

Salomão Sousa: Não reconheço na Língua Portuguesa um poeta que servisse de fio condutor para permanentes delimitações poéticas, ou para consolidação do modernismo, como pretendes. Basta reconhecer que não há em Portugal uma figura central no Barroco, que impulsionasse as gerações futuras, seja lá ou aqui no Brasil. De Espanha, ao contrário, a luz das Soledades, de Gongora, continua a iluminar até nossos dias, comprova essa clarividência o romance Cem Anos de Solidão (o título desse livro sai de um verso gongórico). Apenas Camões continua, sem que isso seja uma marca registrada, ao longo do tempo, a alimentar a lírica, que não é uma faceta marcante do modernismo. Talvez os brasileiros, no entanto, tivessem uma resistência natural aos poetas portugueses, já que era a cultura do colonizador, para que tenham tido necessidade de buscar nos franceses e nos alemães rumos fortificadores para uma poesia que aumentasse a potência do grito de independência.
É de 1905 a edição dos Cantos de vida e esperanza, que contribuiu para a formação da poesia latino-americana. Três publicações, que saíram não tão distantes do livro de Rubén Dario, delimitariam novos rumos para a poesia brasileira: Últimos cantos (1851), de Gonçalves Dias; Os escravos (1883), de Castro Alves; e Eu (1913), de Augusto dos Anjos. Não que esses livros balizassem a poética nacional, ou que daí saíssem os rudimentos reais do modernismo, mas pelo menos fundaram a necessidade de delimitação de um novo solo pátrio, pois só daí é possível submergir as ramificações frutificativas da poesia. É bom abrir um parêntese – Gonçalves Dias anda pouco estudado por aqueles que buscam as fundações da cultura brasileira. A sua poesia tem raízes mais profundas do que o que tem alcançado as escavações dos pesquisadores.
Enquanto não surgisse uma burguesia, principalmente paulista, que conseguisse acesso à cultura, o modernismo não se integraria nestas plagas. E o progresso não seria ainda assim tão fácil, pois só a segunda fase do modernismo produziria os grandes poetas brasileiros. Aqueles da Semana de 22 produziram uma poesia libertadora, mas irresponsável com a sonoridade e com a elegância metafórica, já que foram apressados e festivos. E a poesia exige introspecção, recolhimento. E talvez o modernismo só se amadurecesse na terceira fase. Ou quarta. Pois só em 1952 seria publicado Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, e, de 1965, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. E nenhum desses livros descende em linha direta de Castro Alves, Gonçalves Dias ou Augusto dos Anjos. Para o surgimento da poesia do amadurecido modernismo brasileiro, muitas águas teriam de entrar ainda por nossas fronteiras.
Muitos vão chiar pela ausência de Manuel Bandeira, que transitou quase em todas as fases do Modernismo. Ou mesmo de Carlos Drummond de Andrade. Acontece, no entanto, que estes não foram poetas inventores, mas praticantes da eterna linhagem lírica. E dessa linhagem, sejam as vanguardas ou os barroquismos, nenhuma corrente da poesia pode se afastar ou a crítica de qualquer tempo pode condenar.
A poesia brasileira, desde os árcades mineiros, esteve sempre relacionada aos movimentos de emancipação. Antes de se preocupar com as negações de uma mimese lingüística, as correntes poéticas precisavam fundar a Pátria. Até hoje, sempre que se faz poesia, se faz por emancipação. Não é à toa que todo movimento de vanguarda é repudiado no solo pátrio. Talvez as vanguardas só sejam aceitas, sem vilipêndio, em solos desenvolvidos, que não tenham de buscar independência econômica. Mas este já é um tópico que está bem à frente do Barroco e do Modernismo.

Víctor Sosa: Certamente: Portugal não teve nenhum Góngora, nenhum Quevedo, tampouco –nesse oposto extremo da Língua– nenhum San Juan de la Cruz; o Século de Ouro espanhol talvez tenha sido uma feliz especificidade desse outro lado da Península Ibérica. Sem dúvida, depois desses três portentos do Século de Ouro, a poesia espanhola viveu um prolongado declive que só seria superado com a geração de 98 (Antonio Machado, Juan Ramón Jiménez) e, sobretudo, com a de 27 (Lorca, Alberti, Miguel Hernández, Jorge Guillén, entre outros), inclusive é essa inquieta geração –que tinha lido Mallarmé, Valéry e os surrealistas– que resgata Góngora do esquecimento. Muito já foi escrito sobre esse tema, mas recordemos o mais importante: a leitura que os jovens espanhóis daqueles anos fazem de Góngora só é possível graças à leitura dos poetas franceses e, principalmente, de Mallarmé. Sob esse filtro, sob essa nova preocupação com a forma, com a sonoridade e com a “tectônica” da palavra, é que Góngora adquire um estatuto “moderno”, se torna legível e de interesse para a visão poética do século XX. Como dizia Borges: cada escritor cria seus antecessores e, assim, reinventa o passado. Aquele Góngora incompreendido e esquecido durante mais de duzentos anos, logo advém como referência e autor de culto para certas gerações de poetas do século XX espanhol e, logo, latino-americano. Mas, insisto, isto não teria sido possível sem essa grande revolução da sensibilidade –e da “razão” poética– que aconteceu na França desde meados do século XIX até adiantados do século XX. A leitura que fazemos de Góngora é uma leitura moderna, uma leitura – se me permites o termo – “interessada” pela modernidade, vale dizer, traspassada e condicionada por esta; uma leitura, claro, nada inocente e tão diferente como distante da que podia fazer o homem do século XVII.
Sem dúvida, além deste renascimento da lírica espanhola, os poetas hispano-americanos mais relevantes viviam sob a influência francesa: lembremos que Huidobro escreve nessa língua seus primeiros livros sob os efeitos do cubismo; Neruda, Vallejo e Girondo recebem influências do surrealismo; nenhum deles desconhecia Mallarmé e os poetas simbolistas. A América hispânica do século XIX e começos do século XX, culturalmente falando, estava mais próxima da França que da chamada Mãe Pátria. Não é nada extraordinário: a França continuava sendo até então uma das referências mais importantes não só no campo da cultura mas também da política, da filosofia (o positivismo de Comte teve seus melhores frutos na América Latina com os governos liberais –penso no Cone Sul: Argentina, Uruguai, Chile– e os despotismos ilustrados –penso no México do ditador Porfirio Díaz–), da urbanística e dos “bons costumes” (do uso do haxixe até o prêt-à-porter). Mas a América Latina – nas suas duas principais vertentes: lusitana e espanhola – não são a exceção; o mundo inteiro estava sob domínio francês (de Buenos Aires a São Petersburgo) como hoje todos estamos sob domínio norte-americano. Nesse sentido, não acredito que os brasileiros tenham buscado esses “rumos fortificadores” como resistência à cultura dos colonizadores portugueses. Se Portugal tivesse sido nesses momentos uma potência cultural vigorosa e propositiva, seguramente o Brasil não teria podido evitar essa influência – e junto ao Brasil muitos outros países de outras línguas. Acredito que o território das artes não pode ser compreendido como um problema de colonizados e colonizadores (ainda que alguns modernistas tenham entendido assim). A arte não vai necessariamente de mão dada com o afã imperialista; a Alemanha nazista ou a Rússia stalinista não exportaram uma só idéia ou influência artística para o resto do mundo, se eram, naquele momento, impérios poderosos. Não sabemos (ou, pelo menos, eu não sei) por que uma cultura se expande, se ramifica e permeia outras culturas criando um código comum, um entendimento e um usufruto consensual. A decadência dos impérios da Espanha e de Portugal pode e tem muito a ver com a riqueza cultural da Francia monárquica e republicana, mas não explica ou encerra o assunto por um mecanicista entendimento do fiel da balança.
Acredito que o Modernismo da Semana de 22 também provém dessa vertente que passa por Mallarmé, Apollinaire e Marinetti, e pouco deve a um poeta como Augusto dos Anjos, no entanto, devedor da estética romântica do século XIX. É verdade que o modernismo brasileiro foi mais importante como atitude, como descondicionamento cultural e como revolta nas artes e nas letras de teu país, que como criador de obras imorredouras ou poéticas imprescindíveis. Certamente: depois da explosão inicial o terreno começa a cimentar-se com nomes como o de João Cabral de Melo Neto (que já não é, propriamente dito, modernista), com una técnica e uma depuração compositiva que não tinha o modernismo; mas João Cabral está mais próximo (e não só cronologicamente) da experiência concreta e neoconcreta de Ferreira Gullar, Haroldo e Augusto de Campos e de tudo o que Noigandres significa dos anos 50 por diante. Drummond de Andrade é um caso interessante por ser o poeta mais popular do Brasil, mas, em meu modo de ver, sua obra se empobrece à medida que fica mais popular. Bandeira foi importantíssimo como ponte entre a tradição e a vanguarda, o coloquialismo e o humor de sua poesia já prefiguravam a irreverência modernista antes de 22 – eu gostaria de compará-lo com Apollinaire em relação ao surrealismo.
Após chegar a este ponto (mesmo esperando que aprofundes, a partir de tua óptica brasileira, o que foi dito anteriormente por mim), que o próximo tópico que se impõe ao nosso diálogo é o da poesia concreta. Que importância tem para ti? É uma continuidade do modernismo e do espírito de 22? Ainda tem vigência como tendência poética?

Salomão Sousa: Talvez eu tenha sido um tanto impreciso quando disse que a poesia brasileira refutou a linguagem do colonizador. Não houve refutação enquanto ato de absorver uma poética, pois, se nada era derramado por aqui, nada havia o que entranhar na pele produtiva, mas, talvez num ato apenas defensivo, de resistência aos mandatários, houvesse preferência (termo excessivamente forte, pois em relações culturais não há preferências, já que as variáveis de uma aculturação são diversas) pelas linguagens de outras nacionalidades, mais libertárias. Ainda mais que o português não permitiu o rápido florescimento da cultura na colônia. Quase três séculos se passaram desde o descobrimento até haver preocupação com um parque que envolvesse universidade, teatros, imprensa. A cultura –aí sim o Barroco teve importância, sobretudo no Barroco Mineiro, com Aleijadinho– se limitava ao imaginário religioso. E essa preocupação não estava voltada para emancipação, mas para atendimento do filho do colonizador. Até os pórticos do Século XX, os livros eram impressos na Europa. Tenho insistido em lembrar àqueles que procuram menoscabar o cânone brasileiro que a nacionalidade brasileira é muito recente, que ainda está em formação em comparação com a civilização européia.
Para contrapor a ausência do Barroco nas letras brasileiras, talvez eu tenha minimizado a importância do Arcadismo. Pois, já que o Barroco foi inexpressivo na Língua Portuguesa, os árcades mineiros se valeram do Classicismo para legitimação de uma poética e de uma nacionalidade. Como os árcades tinham a prerrogativa da camuflagem embaixo de nomes de pastores, puderam somar a ação política à prática poética nos mesmos disfarces. Trata-se de movimento que aos poucos vai sendo recuperado, principalmente com a edição crítica da produção do período. Talvez o Arcadismo ainda vá se firmar melhor que o Parnasianismo ou do que o próprio Simbolismo. Serviu para a cor local do Romantismo e do Modernismo.
No meu parco entendimento, acredito que a expansão da cultura se dá em momentos de polarizações econômicas de uma nacionalidade. Só a expansão econômica não motiva o florescimento da cultura. Se assim fosse, o cinema norte-americano não seria tão pernicioso para a desestruturação do indivíduo em outras nacionalidades. Quando uma nação se expande em excesso, ela pode querer impor o medo em vez de querer ditar modelos culturais. Agora, quando uma sociedade avança economicamente, com uma burguesia interessada em interferir no espírito da humanidade, pode ocorrer o florescimento cultural capaz de interagir com outras culturas. Por isso, temos de ter muita cautela na aceitação do Concretismo. Ele floresceu num instante em que a burguesia tinha perdido todas as bandeiras, fossem elas políticas, artísticas ou econômicas. Assim, o Concretismo passou a ser uma espécie de expansão do urbanismo, já que a burguesia não conseguia habitar mais do que aquilo que conseguia construir. A arte passou a ser a expansão da habitação, aquela parcela que não precisava mais ser habitada. O burguês não precisava habitar nem mesmo com interpretação, já que a interpretação exige a presença do indivíduo em suas interações sociais. E o burguês já estava doente do individualismo que não quer ombrear com o outro.
Salutar o encontro, nas tuas interpretações, de vertentes da formação da poesia brasileira, que até os críticos insistam em negar ou desconhecer. Neste momento, eu diria que há um pequeno grupo, que gira em torno da Folha de S.Paulo, preocupado em não desgarrar o umbigo das vanguardas. Não é à toa que outras linguagens não conseguem furar o dominador bloqueio crítico da imprensa paulista. E, para contrapor, diversos segmentos nacionais –sem que tenha noção explícita da situação– condenam o Parnasianismo, mas praticam um velado Simbolismo. Eu não compreendia essa atual necessidade simbolista da poesia brasileira, mas, neste instante, através do nosso diálogo, compreendo que, numa fuga das vanguardas, algumas vertentes preferiram leitos imantados do Simbolismo, que não irão alcançar terrenos sólidos, já que eles vão contra o desaguar natural da formação poética brasileira.
Depois do Modernismo de 22, muita coisa aconteceu na poesia brasileira. Só para entrelaçamento com as tuas observações sobre o positivismo, chegamos a ter até o movimento Verde Amarelo, capitaneado por Plínio Salgado e Cassiano Ricardo, de cunho nazi-fascista. Dessa bandeira ficou o jargão “Ordem e Progresso” em nosso pavilhão. Quando Cassiano Ricardo acordou para a situação, bandeou para a práxis. No auge do modernismo, alguns chegaram a reagir com situações mais formalistas, instaurando o movimento da Poesia de 45. Só que o Concretismo não seria reação pura e simples a esses movimentos. Vinha acompanhado das novas visões urbanísticas – basta ver a passagem de Le Corbusier pelo Brasil e por outros países da América Latina pregando a ampliação do ambiente em novas formas. Basta ver o retorno de Oscar Niemayer das aulas de Le Corbusier, em Paris, pronto para enfrentar o concreto de Brasília. A burguesia queria mudar a visão exótica da paisagem brasileira. JK buscava inserir o Brasil entre as grandes nações.
Os concretistas entraram nesse vácuo e contribuíram para colocar o Brasil na vanguarda literária das outras nações, sem a necessidade de atribuir à poesia o papel emancipacionista da nacionalidade. Não só os concretistas contribuíram para levar a poesia brasileira a outros rincões, também o intercâmbio diplomático (Vinicius de Morais, João Cabral, Murilo Mendes e Alphonsus de Guimarães Filho atuando no exterior, e Ungaretti dando aulas em universidades brasileiras). Só a partir daí a poesia brasileira passou a ter uma exterioridade. Temos de reconhecer, portanto, que o Concretismo, aliado aos movimentos periféricos como a práxis e o poema-processo, além de atribuir essa exterioridade à poesia brasileira, fundou a plasticidade e a poeticidade do verso sem a necessidade da excessiva paisagem, dos símbolos, da contestação. A frase não seria mais a mesma. O formato do livro, para comportar o novo poema, não podia ser mais só retangular. O Concretismo, aberto o portal do novo século, não tem mais importância como prática poética, apenas é a porta aberta para inserção de justeza ao verso, mesmo quando este quase inexista.
Mesmo nada sendo derradeiro, será que há um novo processo poético na poesia latino-americana? Com tantas vertentes, será que há retrocesso? Como não vivi a tradição do Barroco, tenho procurado um verso de pós-vanguarda, em que as palavras não tenham necessidade da interferência de muitas sinalizações. Grande parte da poesia brasileira, que tem valido como cânone, tem se preocupado com um certo realismo do fragmento, onde no poema saltam apenas situações impenetráveis. Não me satisfaz mais uma poesia de um conteúdo específico, ou de fragmento realista. Se tiver de ser impenetrável, que seja pelas próprias referências da língua e não através do isolamento de fragmentos da memória pessoal. Dentro da fragmentação do pessoal, a poesia deixa de existir fora do centro do próprio poeta, principalmente numa época cultural de predomínio do visual, em que não ficam claras as experiências culturais com a palavra escrita para desmembramentos de significados que não nadam na superfície. E acredito que é na fundação destes novos parâmetros que temos de levar o nosso diálogo a termo.

Victor Sosa: A poesia concreta foi uma continuidade do espírito modernista que se viu eclipsado pelo conservadorismo da Geração de 45. Foi, também, uma maneira de pôr em dia a poesia brasileira diante do desenvolvimento e industrialização que marcaram as grandes urbes (principalmente São Paulo), na década de 50. Disso já sabemos e soa retórico repeti-lo aqui, mas repito-o para enfatizar a especificidade brasileira, já que em toda América Latina (e nem é preciso falar dos Estados Unidos) se produz um grande crescimento urbano e industrial na década; no entanto, nem na cidade do México, nem em Buenos Aires nem em Lima (tampouco em Nova Iorque) se produz um movimento poético da importância programática que teve o Concretismo. Novamente, as condições histórico-sociais não explicam a arte. A existência e a inteligência dos irmãos Campos, Décio Pignatari e alguns outros, possibilitaram a criação do Concretismo e sua importante ramificação em outros poetas e poéticas, inclusive além do Brasil. Como toda vanguarda, o Concretismo, principalmente na etapa heróica, definhou por intolerância e dogmatismo: reflexos condicionados que repetiam uma gestualidade proveniente dos futuristas e construtivistas russos e desse fabbro chamado Pound. Sem dúvida, é enorme seu legado poético; os concretistas nos fizeram ver ou re-valorizar a importância da linguagem como estrutura concreta, sua objetividade, sua sonoridade, sua espacialidade sobre a página. Muitos de nós, poetas que cresceram ao longo da década de 70, não podíamos evitar (melhor, víamos com sumo interesse) as ressonâncias que nos chegavam do Brasil e, fato importante: o Concretismo encarnado nas músicas de Caetano Veloso e nalguns outros tropicalistas que experimentavam e inovavam a MPB. Essa relação entre alta cultura e cultura popular sempre me pareceu admirável e muito específico dos brasileiros, nada parecido acontece nos países hispano-americanos. Em suma: odiado, admirado, criticado, negado, o Concretismo continua sendo uma referência central quando falamos de poesia brasileira e é presença em muitos poetas e poéticas que poderíamos denominar de pós-vanguardistas.
Penso em Leminski, em Glauco Matoso, em Arnaldo Antunes, em Wilson Bueno, em Cláudio Daniel, em Ricardo Corona, em Rodrigo Garcia Lopes, entre outros. Poetas e poéticas dissímeis, mas que provém ou transparecem uma raiz comum. O Concretismo, como um vulcão, fertilizou o terreno da poesia brasileira e estamos vendo e desfrutando esses frutos. Acredito que hoje, no Brasil, está sendo escrita a melhor, a mais vital e propositiva poesia do Continente. Sem sectarismos nem planos pilotos, os poetas pós-vanguadistas assimilam, reciclam, se apropriam e criam um discurso híbrido, uma mestiçagem estilística que passa pelo neobarroco, o uso do portunhol e a ruptura dos gêneros. A co-habitação na diferença é uma das características mais saudáveis dos tempos que correm e essa atitude define, também, o fim da era das vanguardas que no Brasil teve seu momento mais “puro” com os poetas concretistas. Outro sintoma dessa saúde se vê nas muitas publicações de qualidade que, de uns tempos para cá, têm surgido no Brasil: et cétera, Oroboro, Coyote, são, entre muitas outras, algumas das revistas especializadas ou que dão grande importância à produção poética. Esse fenômeno é quase inexistente no resto da América Latina.

Salomão Sousa: Só a pós-vanguarda não arremata as vertentes da poesia brasileira, que vive, atualmente –e sempre foi assim, basta lembrar Auta de Souza, Sousândrade, Kilkerry, Sosígenes Costa, Zila Mamede, José Godoy Garcia–, peculiares situações periféricas, a maioria ainda rejeitada por ter atuado na província. Mas como lembra de forma correta Paulo Henriques Britto, em entrevista recente, há pluralidade de linguagens, mas acabaram as divergências, pois essas linguagens não mais obrigam os poetas a se firmarem em grupos ou a renegar correntes divergentes. Os suplementos e as revistas em circulação não fermentam nenhuma divergência ou vontade de definições mais ousadas. Sem que haja definição crítica, –há muito mais preocupação em saudações de compadrio–, há espaço para neo-simbolistas, numa lembrança rápida: principalmente em Goiás, com Valdivino Braz e Delermando Vieira; do maranhense Luís Augusto Cassas e do amazonense Aníbal Beça, que também se ajustam ao neobarroco e ao lírico modernismo. Espaço ainda para revitalizadores do Modernismo, com muita acolhida na grande imprensa, oriundos da poesia marginal –saudosistas de Leminski– e seguidores de Mário Quintana, Manuel Bandeira e Vinicius de Morais, além de reflexo da fluência de Fernando Pessoa em nosso meio acadêmico. E esses representam parcela significativa dos novos poetas brasileiros, exemplos podem ser encontrados em Chico Alvim, Nicolas Behr, Carpinejar, Ana Miranda, e tantos outros. Mas esses caem em lugares comuns, ou em flexões óbvias de situações do cotidiano. Os versos de comunicação explícita, só que de poética inconseqüente – veja em Ana Miranda: E Jesus desceu da cruz/para nos salvar. E ela, que pesquisou tanto a obra e a vida de Gregório de Matos, detinha grandes chances de ter se aproximado da vanguarda do neobarroco. Até uma poeta veterana como Adélia Prado –filha tardia do modernismo– se viu chamada a descambar para a “epifania”, comprometendo aquele fluxo inicial de galante lirismo e realidade, levado com justiça ao pedestal por Drummond. Há, ainda, espaço para aqueles que regridem para espaços formais já encerrados com a Geração de 45, como é o caso de Alexei Bueno e Bruno Tolentino. O grupo que transita em torno da revista Inimigo rumor e da Editora 7 Letras, com liderança de Carlito Azevedo e Ronaldo Polito, quase sempre pratica um modernismo minimalista, com impenetrabilidade, apesar de não tender para o surrealismo. Destaques merecem Micheliny Verunschk, Eucanaã Ferraz e Cláudio Daniel, que animam esperança para equilíbrio entre a tradição e a pós-vanguarda. Há juventude poética na jovem Verunschk, e certamente sua poesia logo alcançará resistente arcabouço formal. Há espaço para rebeldias líricas, em vozes femininas, aqui pode ser destacado com pertinência o lugar cativo alcançado por poetas como Orides Fontela, Hilda Hilst, Marialzira Perestrelo, Yêda Schmaltz e, no minimalismo zen, Cristina Bastos. Situação peculiar é a poesia de Iacyr Anderson de Freitas, que transita entre o classicismo e a pós-vanguarda lírica. Junto com Paulo Henriques Britto e Marcos Siscar, Iacyr redireciona a poesia brasileira para uma linguagem convincente, animadora de crítica, inventividade e emoção. Pois não basta ser herdeiro das vanguardas, do Modernismo, do Barroco e das vertentes do surrealismo. Não é necessário transgredir, mas progredir dentro da língua, nas possibilidades sonoras, significações, abundância de aliterações, sempre aliadas ao bordado das questões sociais, riqueza dos costumes, sincretismos religiosos, volume dos vocábulos que saem da natureza e desses sincretismos. Há displicência na maioria dos poetas brasileiros atuais –e eles poderiam se espelhar nos exemplos dos modernistas e dos concretos– quanto à compreensão de sua herança cultural e a definição de uma poética para uma postura produtiva a esse pós-tudo.
Saudável que o diálogo sobre a poesia seja sem fim.



















Poema de Victor Sosa
Tradução: Salomão Sousa

Deixar de ser: sair
Não ser mais o pássaro na rama
nem a rã em sua lama; ser a pedra
de toque voraz, pedra rodada
pelo mundo: canto; não ser
mais a pedra ser a árvore presa
à curva terráquea, árvore
votiva, cheia de pássaros vazia de copa
árvore que fala em sussurros; não ser
mais a árvore ser o fruto
da estação que se anuncia, fruto
do trabalho e fruto proibido
do prazer; por exemplo: essa maçã
no sexo da garota; não ser
mais o fruto ser a garota
que olha na janela, o que olha a garota?
olha as costas da Argélia, olha as Costas do Marfim
olha! ali vai Ulisses; não ser
mais a garota ser Ulisses, ileso
de sereias em sua Ítaca; não ser
mais sua Ítaca ser Minotauro sem medo
e ferir a virilha da moça inglesa
que pode ser Ariadne, que pode ser o pássaro
quetzal ou Quetzalcóaltl, o deus que disse adeus
porque deixar de ser é ser como ele: se passar
por colibri e não se passar pela noiva
não pensar em Esperança quando chegar
a desesperança, e é certo
que a desesperança chega já que é afluente
é dilúvio e é pranto militar; deixar de ser
será desfazer o poema em seu iglu
declinar Juana de Ibarbourou, saudar
sobre a ponte do Brooklyn com a esquerda
e benzer com a direita; será
não dar as horas a César; dar graças
e fechar o serviço.

Deixar de ser: caminhar sobre as águas.


Poema de Salomão Sousa

àqueles que não acreditam
que habitarão as noites
àqueles que habilitam
as cercanias do vazio
não falarei de urtigas
não direi que vi
as galhadas das murtas ao sol

aqui está a língua
que dá gosto às palavras
e não ficarão mudas
as traças dentro dos ossos
não direi que vi as gargalhadas
de membrudos inimigos

não direi que aos seus ombros
encostei a dor e deitei a luz
ainda que as noites insistam
as asas das peçonhas
deixo a sabedoria do orvalho
que dá bravura às raízes secas

Entrevista ao Vassil Oliveira p/O jornal da Segunda

À semelhança do que acontece com as grandes festas literárias de Parati (RJ) e Passo Fundo (RS), a cidade de Goiás — conhecida até no exterior como a terra da poeta Cora Coralina — sedia o primeiro Festival de Poesia de Goyaz, com a presença de alguns dos mais significativos poetas e estudiosos de poesia do país. As várias vertentes da poesia da atualidade são debatidas em seis grandes painéis, sendo o primeiro deles com exposição do goiano Gilberto Mendonça Teles, além de oficinas literárias, sessões de recitais, exposições e dezenas de lançamentos.
O evento só se tornou financeiramente viável através de um pool de patrocinadores do estado de Goiás. Os coordenadores, Adalberto Müller Jr (também poeta) e Graça Ramos, enfatizam que o evento busca integrar regionalmente o Brasil. “A poesia é o elo, Ela nos une nacionalmente e culturalmente, porque torna a nossa língua mais bela e inteligente.”
A sessão de abertura, em homenagem ao poeta Manoel de Barros, contou com mini-conferência do professor José Fernandes (UFG), pois o crítico goiano foi um dos primeiros a fazer análise da produção do poeta mato-grossense.
Como parte do evento, o Prêmio Goyaz de Poesia premia três autores em certame de âmbito nacional. Os vencedores ganham já em abril a publicação das obras vencedoras através da Editora 7Letras, com distribuição nacional. A comissão julgadora foi constituída pelas professoras Ligia Cademartori (DF) e Célia Sebastiana da Silva (GO) e pelo escritor Ronaldo Costa Fernandes (DF).
Salomão Sousa, goiano residente em Brasília, como um dos premiados do Prêmio Goyaz de Poesia com o livro Ruínas ao Sol, analisa em entrevista especial à Tribuna a importância do Festival de Poesia de Goyaz, o seu processo criativo e aspectos da poesia brasileira.

O que representa o Festival de Poesia para os escritores de Goiás?
Salomão Sousa – Sempre que se realiza um evento de tamanha envergadura, todo aquele que não aparece na grade da programação acaba fazendo leitura desanimadora. Dois vetores já são suficientes para justificar a importância do festival em Goiás. Antes de tudo, para quebra de isolamento dos escritores do Centro-Oeste, pois — acredito — um dos seus objetivos é a promoção do intercâmbio de informações e de relacionamento entre os poetas de todos os Estados. E, para alcance de intercâmbio, cada um tem de abrir concessões. Aos goianos e candangos, cabe a abertura de seus salões, a apresentação de sua poesia, e garantia de abertura de processo crítico, sem perda da elegância e da hospitalidade. A hospitalidade crítica também é fundamental para o intercâmbio cultural.

O Estado de Goiás está suficientemente representado no evento?
Salomão Sousa — Sem dúvida alguma o Estado de Goiás ficou bem representado, principalmente quando coube a Gilberto Mendonça Teles a responsabilidade dos debates da primeira Mesa dos trabalhos, pois nenhum outro poeta representa hoje melhor a poesia goiana. Ele tem respeitabilidade pelos estudos crítico e histórico da literatura brasileira, e tem produção poética conhecida nacionalmente. Com a perda recente de José Godoy Garcia, de Afonso Félix de Souza e de Yeda Schmaltz, a poesia goiana só poderia estar presente com Gilberto Mendonça Teles. Quanto à realização do festival na cidade de Goiás já é sinal de veneração por Cora Coralina. Todo aquele que se faz presente ao festival ou que dele tomar conhecimento inevitavelmente vai fazer reflexões sobre a presença de Cora Coralina, já que ali é a sua terra, sem esquecer que parte da programação acontece na casa dela, em que ela viveu e produziu a obra que todos conhecem. E Augusta Faro e Miguel Jorge, apesar de não serem reconhecidos como poetas, são aqueles que melhor se relacionam com a literatura de outras localidades, já que seus livros alcançam o mercado nacional. E Heleno Godoy — o poeta goiano que mais pesquisa a linguagem da poesia —, por seu passado polêmico, não pode ser menosprezado. Tem auxiliado no debate crítico da poesia no meio acadêmico. Em nome do intercâmbio, alguém acaba perdendo a oportunidade de estar na grade da programação, como é o caso de Brasigóis Felício e de Goiamérico Felício, e muitos outros.

Quanto aos convidados das outras regiões — eles representam as várias vertentes da poesia brasileira?
Salomão Sousa — Sinto ausência apenas dos marginais de Minas Gerais, que sempre animam os eventos em que estão presentes. Ainda nesse ano, realizou-se em Belo Horizonte um encontro especial só para homenagear a obra de Rogério Salgado. Mas poderíamos dizer que na vertente de uma poesia voltada para a comunicabilidade, sem invenção, com preocupação com o mercado, comparecem Carpinejar, Antônio Cícero, Ivan Junqueira e Affonso Romano de Sant’Anna. Como representante de uma poesia preocupada com a tradição moderna, de construção, comparece Paulo Henriques Brito. Só a representatividade da poesia marginal, por ser corrente que não está mais em voga, ficou excessiva. Apesar de os marginais viverem uma crise de identidade — pois estão reconhecendo a necessidade de amadurecimento dos textos —, não chega a ser negativa a extensão da lista dos convidados, pois não podemos negar que eles são mestres em interatividade nas performances públicas. A poesia da pós-modernidade está bem representada. Aos nomes de Micheliny Verunschk (que ainda tem muito para dar, principalmente na depuração objetiva dos poemas), Carlito Azevedo e Fabiano Calixto poderiam se juntar diversos outros.

A poesia brasileira atual tem uma cara? E poderíamos dizer que a poesia de Goiás está desenhada nela?
Salomão Sousa — A poesia sempre vive de glórias do passado. É raro um poeta cair no gosto da crítica logo no primeiro livro lançado. Adélia Prado é o último poeta que o Brasil aceitou de forma unânime desde o primeiro livro (Bagagem, que é um clássico). Depois sobra Manoel de Barros, e, sem unanimidade, Ferreira Gullar. Mas há um lado positivo na poesia atual — a experimentação, a busca, a dúvida quanto às dicções. Cada um está procurando caminhos próprios — por isso a diversidade das linguagens da pós-modernidade da poesia brasileira. Não basta mais o lirismo, a vanguarda ou mesmo a poesia marginal. Essas correntes não têm nada mais para dar. E, num primeiro momento, toda experimentação soa com estranheza. Os ouvidos precisam ser educados para as novas dicções. Para mim, Marcos Sciscar se destaca pela experimentação, e Paulo Henriques Britto, pela certeza, exatidão dos poemas. E, ainda, Iacyr Anderson Freitas (ficou fora do Festival), que consegue percorrer linhas líricas bem peculiares, com transgressões na tradição. Quanto a Goiás — além de poetas atuantes, mesmo sem estarem inseridos nas novas experimentações —, deve se esforçar para consolidar o nome de seus grandes poetas. Goiás não pode viver só da glória de Cora Coralina quando tem poetas muito mais importantes — basta lembrar José Godoy Garcia e Yeda Schmaltz. Jataí também tem de fazer um monumento para José Godoy Garcia, certamente seu maior ídolo, talvez maior que Toniquinho, que se imortalizou só por ter arrancado um compromisso de JK.

Chegou em boa hora a premiação no Prêmio Goyaz de Poesia?
Salomão Sousa — O prêmio demonstra para mim que não está sendo inútil o estudo que venho fazendo sobre os novos rumos da poesia da América Latina. Eu queria me alinhar um pouco mais com a poesia neobarroca — que eu chamo de pós-vanguarda —, sem, no entanto, me desvincular totalmente de minhas raízes goianas. O resultado é uma poesia mais ordenada, sem significar retorno à poesia medida, às linhas simbolista ou romântica. Outro dia eu estava ouvindo Miles Davis e tive o seguinte pensamento: eu nasci na modernidade e para a modernidade. Além do mais, a publicação de um livro inédito, agora em 2006, contribui para as comemorações do 25º aniversário do meu primeiro livro. E só o fato de receber o prêmio ao lado de Marcos Sciscar já me deixa duplamente premiado. Ele busca novas formas e, com isso, tem conseguido montar uma poesia das mais bem sucedidas dos últimos tempos. E não tem sido outro o meu propósito.

Está programando mais algum livro para as comemorações do 25º aniversário de publicação de A moenda dos Dias?
Salomão Sousa — Sob o título geral de Safra quebrada, montei uma antologia dos meus seis livros publicados e acrescentei dois inéditos (Gleba dos excluídos, que reúne os poemas que não se encaixaram nos livros já publicados, e O marimbondo feliz, de poesia infanto-juvenil). Se não for frustrado na captação de recursos para viabilizar a edição, essa antologia será lançada também em 2006.

Quais suas influências? Você acredita em escritor ingênuo, sem leitura, ou a prática da poesia requer uma preparação cultural para ela?Salomão Sousa — Não há literatura sem formação formal e sem reflexos da herança cultural do indivíduo que se propõe a ser poeta. A poesia de um determinado poeta é o somatório da encruzilhada de suas experiências junto à sociedade, à família, à região de seu país, às tradições, conceitos e preconceitos de seu grupo, somado aí o contato com a tradição da poesia. Se fosse desnecessária essa encruzilhada para o surgimento de uma nova dicção poética, todos se proporiam a ser Homero, Shakespeare — e todos chegariam a ser clássico antes de passar pela modernidade de seu tempo. Sem contar a anima poética, que é a grande desgraça do poeta, pois ele nunca terá certeza se vive com ela. As minhas influências remontam ao tempo em que eu andava de calça curta pelas capoeiras da Fazenda Calvo. Já naquele tempo aprendia o nome das árvores, a variação das cores do capim no escorrer das

Entrevista ao Pensar do Estado de Minas

1) Como você vê a evolução de sua poesia desde o primeiro livro, A moenda dos dias (1979), publicado há 25 anos, até hoje, com Ruínas ao Sol (2006)?
Salomão Sousa: Nasci em 1952. Os poetas que nasceram no período em que eram lançados Invenção de Orfeu (52) e Morte e vida severina (65) — livros que sintetizam as experiências dos diversos períodos da poesia brasileira —, terão de se ajustar a novas linguagens, se quiserem participar, de forma renovada, da modernidade poética. Morreram as vertentes da poesia marginal, da poesia processo e do concretismo, além da falsa poesia de protesto praticada na vigência do regime militar. O poeta que insistir nalguma dessas vertentes estará assinando o termo do próprio funeral. Para se inserirem no panorama atual, o poeta que nasceu naquela época terá de se ajustar às linguagens daqueles que nasceram até vinte anos depois. Isto não significa que a obra anterior desse poeta não tenha cumprido o seu papel ou que não tenha funcionalidade no presente, pois aquele que fez a poesia dos anos 70 a 2000 contribuiu para a abertura das portas das buscas que são feitas hoje. Vim dessas vertentes, e, para que satisfizesse de forma mais calorosa o processo crítico e mesmo para que dele me aproximasse, tive de buscar novas alternativas para a minha poesia, buscas estas que culminaram no livro Ruínas ao sol. Mas, para isso, tive escarafunchar muito, e me auxiliou bastante a descoberta do aspecto trágico da poesia inglesa e da sutileza de Ossip Mandelstam, Eugenio Montale, Rilke… Em sua trajetória, o poeta tem de se alimentar de todas as afluências poéticas que puder abarcar sob o risco de cair na secura da esterilidade. Ou para dizer de forma mais clara: produzirá abobrinhas o poeta que não estiver aberto a novas enxertações.

2) Ainda sobre os seus 25 anos de poesia, parece que você está organizando uma antologia com todos os seus poemas? Dá para adiantar alguma coisa?
Salomão Sousa: Safra quebrada, título do livro que já está pronto para edição, foge um pouco dos parâmetros de uma antologia, mas não contempla a totalidade dos poemas dos meus livros. Deve ser editado até o final do próximo semestre, se os recursos prometidos não forem abortados. Ainda que não seja publicado, só a sua organização contribuiu para que eu revisasse a minha produção e também tomasse conhecimento do conjunto daquilo que já escrevi. A cada poema dos meus dois primeiros livros, no momento em que eu fazia a nova composição, sentia me rondar o clima pesado, negro, ameaçador do regime militar. Muitos dos poemas eu revi com aquela dor antiga que eu carregava na espinha enquanto trabalhava nas repartições públicas, ali na Praça dos Três Poderes. Dos poemas dos demais livros, sentia as incertezas da poesia das décadas de 80 e 90, que ainda não vislumbrava saídas para o beco em que ela se encontrava. Assim, pude ter mais consciência daquilo que produzi, e consolidar uma objetividade mais consciente, que auxilia na formatação de uma obra.

3) Muita gente nova tem feito poesia atualmente, e parece que as editoras voltaram a investir no gênero. Você tem acompanhado este processo?
Salomão Sousa: O investimento atual ainda é insuficiente e beira o enganoso, pois o mercado editorial e as forças críticas, acreditando que a “facilidade e a superficialidade” são suficientes para a conquista do mercado, acabam investindo – em nome da Poesia – em textos do mais desbragado e inútil prosaísmo, que não servem para a formatação de linguagens e muito menos contribui como auto-ajuda. Há muitas contradições. A poesia brasileira avançou muito em termos de linguagens que recuperam a inteligência dos tropos, a mesclagem do urbano e rural, o delírio da criação, e as espertezas da sonoridade. A sonoridade voltou a ser necessária, através da invisibilidade das assonâncias e aliterações. E ainda assim vemos carradas de obras de falsidade lírica, de anotações inúteis de incidentes cotidianos e da intimidade dos poetas. É tanta a falsidade que muitas dessas obras não conseguem ficar dois dias em cartaz, mas servem para a momentânea projeção nos grandes prêmios. Salva a atuação das pequenas editoras, como Lumme Editor, e de títulos da Cosac. Destaco dos vários poetas atuais os nomes de Marcos Siscar e de Antônio Moura, este com o vivo Rio Silêncio.

4) Além da poesia você já se aventurou por outros gêneros literários, como a prosa, por exemplo? Já pensou em escrever algum romance?
Salomão Sousa: Não sou prosador, pois não tenho o domínio da fabulação. Talvez pudesse enveredar pela crônica ou pela crítica. Mas sai muito cara, atualmente, a prática da crítica. Ela se profissionalizou, com o gravame de desprezar o colorido pessoal. Fria, impessoal, hábil no resumo. Quem foge desse parâmetro, acaba apunhalado. Qualquer crítica mais vivaz provocará tréplicas intermináveis. Perdemos a humildade, pois a homem da modernidade é auto-suficiente e intocável. E acaba saindo ruim para todo mundo. É numa ambiência de divergências que surgem as descobertas, a proliferação das novas linhagens, a renovação genética da poesia. Já é famosa a frase de Nelson Rodrigues: toda unanimidade é burra. Certa vez fiz uns comentários para o Iacyr Anderson Freitas sobre a sua poesia, e ele me respondeu com satisfação, pois ninguém ousava questionar ou mesmo apontar rumos para que ele amadurecesse o seu processo criativo. E, veja bem, o Iacyr Anderson Freitas tem o domínio da composição poética desde o primeiro instante em que se lançou.

5) Ganhar prêmios literários, como o último que você faturou — o Prêmio Goyaz de Poesia — significa o quê na vida de um escritor? Ajuda a abrir portas das editoras?Salomão Sousa: O escritor só se constrói através da própria obra. A concessão de um prêmio pode abrir as portas da crítica, e até das editoras, principalmente quando o prêmio cuida do financiamento. Se não fossem os editores apaixonados por poesia, todos os poetas teriam de custear a edição de seus livros. Basta ver que há editores atuais que estão fazendo tiragens de duzentos/trezentos exemplares. Há livros de poesia que estão saindo em edição de cem exemplares. Só a paixão pelo livro para que um editor trabalhe numa edição de cem exemplares! Os poetas ainda são editados por outra razão muito simples: dão status ao catálogo das editoras. Se não fosse por status, o Brasil não conheceria as obras de Eugenio Montale, de Rilke e de tantos e todos os outros. Editor está atrás de autores que encham o cofre — mas o lucro é inerente a qualquer atividade econômica.

Luiz de Aquino

Proseando com o poeta

Salomão Sousa escreveu um belo poema, entre tantos outros belos, sob o título "Dar-se aos pregos e às léguas". Deliciei-me das fincadas e andanças do vate da histórica cidade de Bonfim (que o mau gosto de uns poucos, há mais de meio século, transmudou em Silvânia, sem que a bucólica cidade perdesse o encanto). Ele encerrou o poema com essa estrofe:"...perder-se para nascernas flores e nos olhos da terranão ser o ferrolho inchadoo caruncho na madeira das íris"Falei-lhe do meu encanto, e ele retrucou, em mensagem fraternal: "As nossas viagens são as mesmas, com as mesmas íris e o mesmo sol, o mesmo terreiro de chão goiano. O difícil, para nós, é abrir porteiras para fora de nosso rincão. Vamos manter viva a nossa infância, senão perdemos a nossa rebeldia."Perdemos, não, poet'irmão! Não a perdemos, pois exercemos essa teimosia de menino birrento, daqueles a quem os castigos da sobremesa não atingem, porque havia os quintais de múltiplas frutas, nem o cerceamento da liberdade por algumas horas, porque os córregos da meninice estavam ali, "de grito" (*); a toxina dos defensivos ainda não exterminara as piabas que colhíamos em anzóis miúdos, em linhas curtas de varas de bambu. Nosso grito de pirralhos embirrados ecoa não no espaço entre paredões, mas na lonjura do tempo que enevoa nossos cabelos e esturrica nossas peles. E que revéis, somos nós! Crescemos sob o tacão de um regime duro e cruel, mas não esmorecemos; não nos dobramos, como os caniços que nos valiam por varas de pesca, mas não enraizamos tanto que a ventania nos arrancasse do chão benfazejo. Altivos e livres, fechamo-nos por horas em leituras perigosas, mas capazes de nos fazer cidadãos. Cidadãos poetas, porque sem poesia não há liberdade (que o digam Agostinho, de Angola; José Martí, de Cuba; Federico G. Lorca, o espanhol; e Castro Alves, o nosso). Vimos Godoy Garcia, José Décio Filho, Ieda Schmaltz e Afonso Félix de Sousa a gritar por nossa gente ante o arbítrio; vimos José J. Veiga e Bernardo Elis a prosear coragem na escuridão ante as idéias não permitidas. Deles herdamos a bússola dos inquietos, dos insatisfeitos e insurretos. Temos sangue, Salomão, para a justiça decantada, sonhada e mal-exercida; sangue que tinge nossos solos e põe sal no nosso suor de andarilhos das letras. Deixamos que os dias polvilhem de lembranças nossas almas doces e ingênuas, mas bravas o bastante para não se curvar. Temos as cores das areias da Serra Dourada, o vigor das pastagens na vertente do Piracanjuba e o calor termal da Serra de Caldas, acalentado em serenatas de Pirenópolis e dourado de pôr-do-sol de qualquer paragem Goiás. Comemos pequi e genipapo, ingá e guapeva; bebemos cachaça quilombola; dançamos pagode de roça, dançamos catira e, se deixarem... Bem, se deixarem, contamos histórias de medo ao fogo do borralho, em noites de chuva. Mas não deixamos, não mesmo, de cantar poesia. Como não se fazer poeta sob o céu deste Planalto do cerrado, siô?
Luiz de Aquino jornalista e escritor.

Nilto Maciel

A LÓGICA DO PESSIMISMO

O Susto de Viver e A Moenda dos Dias, de Salomão Sousa, foram reunidos num só volume. No primeiro, o poeta, impossibilitado de conter as palavras, a poesia, anuncia o seu drama: a cidade, que o chamou do campo (e esse tema estará mais presente em outros poemas), o assusta, o persegue, o amedronta, como se ele fosse um cão vadio. Não sabe se se quede como árvore em descampado açoitada pelo vento que passa – a vida a fluir – ou se vá, sem rumo, embora. Constata: “Sua sina, menino,/ é de árvore/ em descampado”. O silêncio fala ao seu redor, amedrontador. O poeta pára, enquanto tudo se movimenta, corre. O poeta se assusta da própria imobilidade: “Estendo os olhos/ e há o pedido de não ver”. A cidade (a vida) estende-se como um rumo, caminho sem fim. Mas cadê coragem de enfrentá-la? “A valentia/ conhecida de mim/ arrefeceu”. Mais do que perigoso, o existir ofende. É o medo de viver. O título esconde a palavra e a constatação mais comprometedora. No entanto, não sendo possível escamotear a alma no poema, a confissão sai clara: “Compromete/ olhar sobre os muros”. Do outro lado podem estar escondidos o fruto proibido, a serpente enroscada na árvore, Eva desnuda. Os terrores infantis, ainda recentes, não se apagam facilmente. Por mais que tente trair o próprio medo, ainda assim será fatal o susto. Amarra-se para segurar-se: “Teço a corda com a própria pele”. O corpo (o ser) serve de prisão, de degredo. O mundo é um perigo, abismo onde se precipitam os seres. É preciso fechar-se em si, caramujo. Qualquer impulso irracional leva à queda, como se nunca houvesse dado um passo. Todo passo será falso: “Atiro-me às escondidas/ e os charcos/ me atiçam as quedas”.Na segunda parte – “Dados” – a mesma relação de forças: a pedra (o ser) que gira é atirada, sem destino. A vida é um jogo: o impossível esconde-se detrás das facetas do dado. O azar dorme nos esconsos do cubo. Em si mesmo o dado não fica, não se imobiliza: “A pedra/ atirada/ soa a queda”. É patente o sinal concreto da construção desses poemas, concretismo por metáforas: jogo-vida, pedra-ser.O segundo livro, antes publicado separadamente. também se divide em duas partes. Numa – “Ladainha da Cidade Dura” – o poeta, de forma mais objetiva do que nos poemas já focalizados, individualiza a cidade, dá-lhe nomes: Ceilândia, Brasília. Ocorre uma inversão ótica: em vez do indivíduo perdido nos meandros da cidade, agora a humanidade e a cidade aparecem na pintura poética ampliadas, obscurecendo o indivíduo. O pintor sobe aos céus e de cima vê o todo, e não mais o indivíduo apenas. Ainda assim, o mesmo medo de abrir os olhos, olhar sobre os muros, correr, soltar-se: “Resisto à vontade/ de soltar fora os sapatos,/ de soltar fora os cachorros,/ de soltar fora as ruas.Na segunda parte – “O Ser ao Ser”– o lado oposto dessa cidade de medo: o campo de onde proveio o menino assustado, em busca de si mesmo. Entretanto, apenas um reflexo do passado, porque são as ruas por onde passa que lhe despertam a necessidade de escrever. Nasce em seus ouvidos aquele silêncio antes visto nos outros. O silêncio das coisas é uma auréola protetora. Para onde o poeta for conduzirá consigo o silêncio.A cronologia sentimental de Salomão Sousa obedece a uma lógica do pessimismo. O universo pode ser desigual no tempo e no espaço, porém o indivíduo é apenas um dado, “pedra atirada dentro do rio”. Se antes “entendia cada silêncio que estivesse por perto”, agora “é impossível passar ileso por qualquer despensa do vazio ou do silêncio”. Se antes conservava “um medo leve”, agora “o gume da tristeza não fende o medo”.A linguagem pode mudar, porque mudam o tempo e o espaço, todavia ao personagem nenhum historiador poderá transfigurar. Passa o vento, não a arvore. Passam os dias, os dentes da moenda, não o homem triturado pela vida. Passam as nuvens, os pássaros e o rio, não o menino a quem o bicho-papão fez estremecer.E finalmente: tudo passa, menos o homem e a sua poesia.

Ana Maria Ramiro*

Ruínas ao Sol: alegoria e subversão na obra de Salomão Sousa

"As alegorias são no reino dos pensamentos
o que são as ruínas no reino das coisas".

(Walter Benjamin)


Da mesma forma como respiramos sem ter, na maioria das vezes, consciência de que o estamos fazendo, também somos levados, na rotina imposta pelo cânone já desgastado, a uma leitura embotada, automatizada, da obra literária, uma vez ausente o estranhamento, elemento fundamental e definidor da invenção poética. É a partir da desfamiliarização da linguagem, desse dito estranhamento, que renovamos nossas reações e sensibilidades habituais e adquirimos uma consciência dramática da linguagem, tornando-nos mais auto-conscientes do processo criativo.

Ruínas ao Sol (editora 7Letras), do poeta goiano radicado em Brasília, Salomão Sousa, vencedor do prêmio Goyas de Poesia de 2006, é um desses exemplos de obra renovada/renovadora, ainda raros no atual cenário poético nacional, e que levam o leitor para além da visão estático-linear, estimulando-o a vôos mais altos, a experiências poéticas mais profundas, através de um vasto jogo especular formado por fragmentos de imagens menores, à maneira de um pictograma.

Esta exuberância imagética, conseguida por meio da proliferação de significantes, bem como o emprego da tautologia estrófica ("Alimentamo-nos do mesmo sol e estamos sós/ Alimentamo-nos do mesmo sol e estamos sóis") e terminológica (gomos, tempestades, lenhas, desterros, estradas...) reiteram, como peças de um quebra-cabeça, o pendor fragmentário da obra ("Motivos para tecer o corpo/com pequenas sementes/matizes de feixes de anil/com o secreto desalinhar do novelo/das pequenas aranhas"), exigindo uma leitura em filigrana para total cognição do subtexto e interpretação do discurso poético.

O Sol, elemento simbólico por excelência, fonte máxima de calor e gerador de vida, é mimeticamente identificado com o signo lingüístico ("Só o que virar girassol/ só o que couber na palavra") e será uma das alegorias responsáveis, se não a principal, por reforçar o caráter dinâmico e subversivo da poesia de Salomão e de sua ars poética ("estarás em qualquer/ ilegível estrela ou estrada/ irei recolhendo tuas roupas/ toda em rasgos/ só eu posso te encontrar/ no instante em que fores louca"). O termo estrada também vai encontrar um correspondente sintagmático na idéia de trajeto, direcionamento ou linha (verso) e a própria epígrafe ao livro, do poeta sufi Rûmî, vai corroborar o teor alegórico e incitador da obra ("e vem o sol clarear minhas ruínas").

Esta citação constitui ainda a chave que revelará os artifícios de chiaroscuro e trompe l´œil, que permeiam o livro. Para Rûmi, na tradição mística do islã, o que existe, para além de todas as ilusões, é a unidade. Para ele, por exemplo, as cores enquanto símbolos da multiplicidade constituem uma ilusão, pois a realidade não tem cor e para ela, todas as cores retornam ("Mas quando a noite vela essas cores de ti, percebes que só são vistas por meio da luz"). É na intertextualidade (e aí, o escopo é grande, com referências clássicas, passando por Rilke e chegando em João Cabral e nas novas vertentes literárias), que Salomão se escora para desmascarar o próprio simulacro a que se propôs. Alegorias aos pedaços, ciclos de dissolução e florescimento, ruínas que na verdade buscam o seu antípoda, a reconstrução, o que Severo Sarduy denominou como "facetas de uma franja torcida sobre si mesma".

Ruínas ao Sol revela-se sobretudo como um manifesto contra o marasmo e a banalidade no fazer poético e condensa o engajamento estético do autor para com as constantes e renovadas apreensões artísticas de seu tempo ("Está morta a dinastia/de quem aguarda/sentado na soleira/ A lenha das palavras/ acende a festa/ na beira do meu pasto"), afinal em sua própria concepção, o poeta deve passar pela modernidade de seu tempo, pois a sua poesia tem que refletir o somatório da encruzilhada de suas experiências com as da sociedade em que se encontra inserido ("Sem intimidade com a natureza da vida, a vida fraqueja, a humanidade vira pó"). O novo livro de Salomão Sousa ilumina como uma pequena jóia emblemática, mas mais do que emblema, é um corpo vivo, palavra latente. Comova-se.

Ana Maria Ramiro, poeta de Brasília.

Ligia Cademartori

Força de imagens
Especial para o Pensa do Correio Braziliense

Na primeira composição do livro Estoque de Relâmpagos, de Salomão Sousa, o uso de aliterações — repetição de fonemas semelhantes — mostra cuidado com a sonoridade dos versos. Mas logo fica evidente que a particularidade de sua poesia não reside nos efeitos de som e, sim, na organização das imagens. A profusão delas provoca o leitor para que procure as relações que estabelecem e, por esse modo, descubra a mitologia autoral que as ordena. Ao extrair força poética do substantivo, Salomão Sousa compõe sua própria lição de coisas. Nem todas imediatas, é verdade. Algumas são inalcançáveis. Mas, no radical contraste entre certas imagens pode-se encontrar essenciais efeitos de sentido e o provável princípio que preside as expressões figuradas. Pois a linguagem não faz concessões. Concisa e avessa ao vôo livre, essa é poesia de linhagem auto-reflexiva.
O encadeamento de imagens, para muitos poetas, é mero jogo com o significante, quase um brinquedo. Não é o caso de Estoque de Relâmpagos. Nele observa-se dupla tendência. Uma, em direção ao cósmico, ao telúrico. Outra, ao nada, ao silêncio. Mira a grandiosidade, o espetacular, mas acolhe as faltas e as insignificâncias.
As composições sucedem-se sem títulos que, de algum modo, direcionem a leitura e cumpram a função de marco divisório. Deve-se prestar atenção a esse fluxo que tende a transbordar as margens habituais. O jorro de versos desafia as pausas e desestimula as interrupções. É como se fosse um único poema extenso.
No entanto, entre um poema e outro, há mudanças de tom e ritmo. Algumas, abruptas. Aqui, um discurso retesado a que servem consoantes oclusivas. Mais adiante, chega-se próximo à rarefação lírica. Às vezes, o peso do deserto desaba sobre o corpo. Noutras, ‘‘há tílias verdes esbarrando na aurora’’.
O estilo é modulado, embora prevaleça a condensação. Poeta sem derrames, demonstra respeito pela potência da palavra. Em versos livres, enumera a heterogeneidade dos elementos que compõem um mundo que pode ser adverso, mas não insuportável. O desafio, agora e sempre, é o sentido. Dele o poeta faz recortes com estilete ou cunha.
Como prenuncia o título, relâmpago é imagem recorrente nos poemas. A fulguração entre nuvens, clarão intenso mas breve, ao ser reiteradamente evocada, faz-se chave de leitura. Essa significação ascensional e luminosa, porém, tem seus contrapontos. Entre eles, o escuro seria o mais óbvio. Mas, mais elucidativo, talvez, seja levar em conta outro elemento também freqüente no imaginário poético. Como a madeira, tantas vezes evocada, que esteja em tora ou lascas, é sempre matéria sólida, tangível, duradoura. Mediante as duas imagens opera-se confronto entre fogo e terra, distante e contíguo.
A tensão, se não se esvai, encaminha o poeta a uma aprendizagem: ‘‘Posso esbarrar no escuro do silêncio de onde foram retiradas todas as aparas sem sair lanhado’’. E, provocando associações com a adaptação e a resistência da madeira, conclui: ‘‘Onde foi cortado todo amparo — ali posso me encostar todo em talhas’’. Há fecundidade nesses versos, ímpeto poético que percorre via mítica.

Ligia Cademartori é doutora em teoria literária e autora de Períodos Literários.

Carta a Soares Feitosa

Luiz Paulo Santana

El nuevo e-mail ya está en la agenda. Aquí hace un díanublado, frío, indefinido. Releo "En el Cielo tieneProzac": la misma enorme dramatismo de "El Relato delCapitán". En este, la culminância de la fotoavassaladora, derruindo el propio arte; en aquel, elverso "Madre, en el cielo tiene pan?" concentrando ensí todo el significado de la tragedia humana. La mismainercia vagarosa del movimiento del mundo entre lainocencia y la crueldad. Releo con un sentimiento dederrota, yo pretenso reformador del mundo,racionalista, positivista inconfesso, incapaz decaptarlo en su inmensa complejidad. Ni el envejecer meda la santa sabiduría evocada en el poema, aquella enque la persona se pone como un humilde instrumento yno como un demiurgo de 100ª. categoría: "Se aplazan-le los minutos,al gesto del amor,sacrificios y devociones:éxtasis de Margarita,éxtasis de Madre Teresa,éxtasis del Cura D’Ars,éxtasis de la hermana Dulce;" Pues no será pura sabiduría esa dedicación sinpreguntas, esa fe gratuita? En que horizontesrecogerán tales santas y santos — canonizados o no —la fuerza de su humilde retidão? Como gustaría desaberlo, o mejor, de lo sentís. Tal vez pudierasuperar esa oscilación angustiosa: euforia por elideal de justicia, derrota por la injusticiaflagrante. Y culpa, culpa, culpa. Yo, neurótico,necesito recurrir a la vuestra palabra poética paradisculparme. Porque en ella encuentro un sentimientomayor del mundo. O a la palabra poética de MoacyrFélix: "Sabemos del anzuelo sólo lo que va hasta elfácil blanco y el facílimo rojo de su boiazinha desuperficie; lo que el plomo lleva al fondo, el mar, elpez, la vida del pez, nuestro antojo prendido a lasgiratorias muertes del pez, el secreto céntrico de lapesca, esto nunca sabemos, porque en el mar del Marnada sabemos hasta el fin: somos siempre el inicio,como la plaza es siempre el inicio de otra plaza, comola plaza que, cuando aislada, es sólo un temporalespacio de agua y sal, juego de químicas y retortas,sin ningún movimiento capaz de conectarnos a lahistoria del mar, a su principio y a su fin." De tarde en tarde la barra pesa, usted sabe. De ahíque leo el Salomão Souza con el suyo "Recorte sobre lapoesía brasileña contemporánea" y una vereda se abre.Fina percepción de un movimiento que trasciende elanálisis de una escuela o "igrejinha" y o/sucomparación con otras. Ni siquiera es críticaliteraria, (por un momento, sólo por un momentoresbala para un casi revanchismo al referir un"fundamentalismo" y mencionar la Alexei Bueno yEspinheira Filho) pero percepción fenomenológica. Nohay demérito para nadie. Con su mirada panorámica haceobservaciones interessantíssimas. Salomão Souza me levanta el astral a lo hacermepercibir que ese vacío en la boca del estómago escompartido. Pero, claro que es compartido, que essufrido por todos, sin excepción, pero nonecesariamente incautado, detectado y finalmenteexpreso, por todos. Sólo las "antenas" de lahumanidad, pensadores, poetas y escritores, por deberde oficio. Asimismo la percepción completa, analítica,es posterior. El hecho es que la literatura (de entreotras antenas) emite señales, y los emitió antes de laprimera gran guerra, y entre esta y la segunda, porejemplo. Pues Salomão Souza detecta — como una fuertetendencia, capaz de caracterizar una originalidadexpresiva — en el panorama de la poesía brasileñacontemporánea la compleja y paradoxal expresión delvacío. Compleja como se puede incautar de laelaboración de los versos de los poetas citados.Paradoxal, porque lejos de una poética destituida debrillo, de hecho, por el contrario. Refiriéndose la tal tendencia, escribió Salomão: "...me atrae en la actual poesía de post-vanguardia esalibertad de que no quisiera nada — ni engajamento, nibordado de un texto estructurado en una formadefinida, ni la estructura sólida de los objetos de lanaturaleza y de la cultura.". Otras característicasson señaladas, como agresividad, densidad, sonoridad,sugerencia, interioridade, condensación, corte, que noson en absoluto extrañas al mundo de la poesía, razónporque separé, a mi juicio, la instantaneidade, ladesconstrução de forma y contenido y la ausencia designificado explícito como vetores más importantes deesa tendencia la que se refiere Salomão. Los tresvetores apuntarían para un "vacío" semántico que máscorresponde la una sugerencia, la una pregunta, que launa propuesta, o la una respuesta, ya que estas,incluso por la ausencia cada vez más pronunciada de lo"yo" en el mundo real, dejaron de tener sentido en ese"mundo en añicos" "en que lo yo ya no ocupa la figurade centro". El viaje se interioriza. El metalenguajese hace presente no para explicar fórmulas, pero paracorroborar en la pregunta, o realzar la perplejidad: yahora, en que nos hacemos? La palabra perdió su sentido habitual. Perdió susujeto. Está muda, vacía. Está la espera de unaressignificação. O la sugiere en un nuevo sentido noexplícito, para nueva fruición. No cabe preguntar si esa tendencia y sus poetas tieneno no razón. El hecho, para mí, es que sus versosreflejan una concepción poética que parece "escapar"de la encrucijada en que se mete el mundo, entre elideal gasto, esfarrapado, y el real fragmentado yanômico, a pesar de las marcas del desasosiego. Comoacentúa Salomão, refiriéndose a los versos de IacyrAnderson Freitas, "Entonces, es una vasta busca y unavasta duda.". Mientras eso, Salomão fotografía el mundo con la misma"neutralidad" de los santos y santas en éxtasis: mira,tiene coraje, asesta tu rostro. Vea como es bello. Veacomo es odioso. Vea como reímos y como lloramos. Veacomo somos humildes y cuanto somos pretensiosos. Veacomo la saga humana ten que fantástico lo que tiene elArte. Vea como nuestra historia podrá en los salvar elSiglo Cien, de Ésquilo! Pero, a las veces, a las veces, la barra pesa. Cambiando de palo para cavaco, gustaría de,oportunamente, sustituir (o retirar) en mi página elpoema "Cuando planté en la lata", por incompleto,inacabado, insatisfactorio, más que los demás. No séporque acabó yendo con los otros. Cuando fueraposible. Y ya que hablé de "vacíos" y de metalenguaje,aquí va este que bien puede ser el sustituto de aquel. Desandar Boli, bloque, libros, cenicero,los objetos están aquí,están inertes en su posturade objetos en sí. Nada los reúne, nada los convocapara un cambio existencial.Delante de ellos estoy perplejomudo, deflexo, convencional. No hay perfumes, no hay naufragios,nada me toma ni me liberay los objetos reposan tácitos,todo es silencio, nada se altera. Cansado y roto recojo antenasme acostuesto a las penas de no dormir.Veo carneros, cuento a los centenares,todos a balarme. Grande, gran abrazo, LPSantana

Por Rachel Moura

Não sei nenhuma teoria literária para explicar os poemas do meu amigo Salomão Sousa. Contudo, creio que a poesia pode e deve ser uma janela pela qual vemos e experimentamos o mundo. Nesse sentido, meu ser entende muito bem quando Salomão diz que há “uma noite de pensamento”. Por que será? Talvez seja porque ainda haja “um sol longínquo” ou por que temos profundos motivos para “iludir a morte, “para tecer o corpo” e, ainda, “motivos para sedas nos casulos”.
Também compreendo as infinitas tempestades do eu expostas nas palavras de Salomão: de amor, ódio, conflito, que surgem nas estrofes como arrebatadoras de algo. Tempestades essas que nos levam a navegar no dia-a-dia, ou que às vezes não aparecem: “a tempestade não veio”. Podem também retornar aos desertos, e então é por isso que ficamos a sombra?
Deparo-me, por fim, pelo convite de “sair da sombra das ruínas”, desejar o sol e deixar vir “ao sol as ruínas da pele”, sendo alguém em que “vivo de me mudar de caminhos” para finalmente concordar com o que diz Salomão “navego num mundo sem prumo e sem nauta”.
Em suma, li, reli, naveguei, e por isso viajei, no entanto efetivamente naufraguei. Sobretudo, caminhando olhos e pensamentos pelas estrofes (sua escrita difícil até me deu algum trabalho, mas já me acostumei) fiz sombras ao mesmo tempo em que as desfiz. Isso tudo foi resultado da beleza que é o livro Ruínas ao Sol de Salomão Sousa.

por Hildeberto Barbosa Filho

TRÊS VOZES

O registro das vanguardas parece ter determinado a existência de duas vertentes na poesia brasileira contemporânea. Uma, de viés epigônico e diluidor, afeita ao trato da palavra dentro dos requisitos de uma sintaxe gráfico-espacial que, diria hoje, está emparedada. Outra, atenta, por sua vez, às lições da contensão vocabular, voltada, no entanto, para um dizer em que a força imagética tende a abrir novas latitudes na esfera semântica do poema. Quero crer que os três poetas vencedores do Prêmio Goiás de Poesia, versão 2006, ora publicados pela 7 Letras, na Coleção Guizos, procuram seguir, com suas poéticas individuais, essa última e mais fecunda possibilidade. Salomão Souza, com Ruínas ao sol; Heron Moura, com O respirante, e Marcos Siscar, com O roubo do silêncio, em que pesem as diferenças de ordem técnico-literárias, estilísticas e temático-ideológicas intrínsecas à dicção de cada um, apostam decididamente na energia metafórica da linguagem para expressar uma concepção lírica acerca do mundo e das palavras, enraizada sobretudo na tessitura das imagens. Imagens radicais, inventivas, não raro visionárias, para lembrar a tipologia de Carlos Bousoño, em Teoria de la expressión poética. Salomão Souza elabora este verso emblemático: “Com os idílios dos erros nós remamos” (p. 16); Heron Moura arremata assim o poema “O caracol do paraíso: “Só o nada nos consola / dessa mobília inútil / que mede o paraíso em sua escala”, (p. 51), e Marcos Siscar, em sua medida e concentrada prosa poética, fala das palavras “peroladas de silêncio e de ênfase” (p. 24) e na “catacrese do impensável” (p.31). Só por estes exemplos, cabe-me indagar: não residiria, aqui, a fusão da herança modernista tocada pelo vigor dionisíaco de um Jorge de Lima e pelo rigor apolíneo de um João Cabral? Creio que o impacto deste sortilégio estético permeia uma das veredas dessa nova poesia. Em nenhum momento a substância subjetiva, o fluxo existencial, a percepção reveladora, vezes epifânica, são elididas no labor da construção poética. Mas também é preciso ressaltar que a essa matéria, quase sempre inefável, de que se compõe a poesia, como que preside a consciência da forma, prevista no polimento da frase e do verso, na mensuração do ritmo, na condensação da idéia e, principalmente, na arquitetura das imagens.
Escrito por Correio das Artes às 09h25[ (0) Comente] [ envie esta mensagem ]
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Nas três vozes, aqui comentadas, imprime-se talvez um mesmo tom. Se por um lado o idioma poético passa por um processo constante de reinvenção, o que vem dignificar a linguagem como queria T. S Eliot, por outro, ainda para referir o autor de A terra desolada, no ensaio decisivo, Tradição e talento individual, ocorre não uma liberação, porém uma fuga da emoção, não uma expressão, mas uma fuga da personalidade. Ora, por isto mesmo entendo que estas três expressões poéticas não negam a subjetividade, não traem as fontes germinais da sensibilidade lírica, contudo não se pervertem no confessionalismo amorfo e piegas nem tampouco no experimentalismo estéril e vazio em que tantos se comprazem. A elaboração da imagem, em cada um, ao mesmo tempo em que viabiliza um olhar inaugural sobre as coisas, os objetos, os sentimentos, presta-se também à reflexão, quer implícita quer explicitamente, acerca de suas próprias virtualidades, numa cartografia metalingüística que faz destas poéticas, em muitos momentos, um discurso sobre a própria linguagem, um rastreamento estético da própria poesia, enfim, um dizer sobre o fazer. Mais colado ao visgo da existência, o lirismo de índole filosófica de Salomão Souza não descarta o apelo metalingüístico, quando ao final do poema da página 65, enuncia: “A lenha das palavras / acende a festa / na beira de meu pasto”. Antes, no mesmo texto, o poeta já dissera: “Não consigo sorrir se o homem / deixa de ser uma lenda / se o homem deixa de entrar / nos esconderijos do arco-íris / se é negada a festa da palavra / cheia dos olhos de Osíris / se há o logro da censura / e não chegam dizeres e vizires”. Observem-se em cada verso a carne e a plumagem das palavras. Intuição e razão não se excluem, complementam-se na composição das tantas imagens, imagens estésicas, que habitam este poemário, conjugando significado e significante: Alguns exemplos probatórios: “Muda o pássaro a plumagem / só para ter outra mais viva / e assim combinar com a nuvem” (p. 20); “não ter de abandonar-se / em viagens falhas / por cais de chavascais / por chacais por ais de abismos” (p. 43); “ninguém terá de imaginar fugas / mentir às brumas dos brâmanes” (p. 44), e “a tempestade retorna aos desertos / ameaça minhas tortas tralhas / e volta sem os corais do repouso / em meus dias de trapaças lodaçais / não varre o alcatrão dos meus beirais / espalha o amor onde o sol trabalha” (p. 46). Dotado de um lirismo mais objetivo em que a linguagem é quase sempre descrição, mas descrição anímica, Heron Moura, mesmo tocado pela ruína cósmica, injeta no corpo de uma semântica, diria ambiental e ecológica, o pensar a respeito do poético, mas o pensar por imagens. Veja-se o poema “Dois desertos”, do qual destaco os versos iniciais; “A vida não nos dá a terra / o planejamento das dunas / o pântano onde o sangue coagula / Por que daria o poema?” (p. 66). É ainda o princípio imagético que rege construções como estas: “Meu sistema respiratório / começa nas nuvens e termina / nas raízes, ele pensa, / como um Cesário Verde redivivo” (p 13); “Não posso tocar teu rosto / para não desfazer / a última imagem / da luz em partículas” (p. 42), e “A luz não respira, / o céu real é país despovoado” (p. 75). É, não obstante, em Marcos Siscar, talvez pela lógica da prosa, embora prosa poética, que os imperativos da metalinguagem se fazem mais presentes, transformando O roubo do silêncio numa espécie de ars poetica, já sinalizada, em certo sentido, no título de algumas peças, a exemplo de “Prefácio sem fim”, “As flores do mal”, “Fenomenologia do carrapicho”, “Díptico do silêncio”, “Natureza morta”, “Ode à febre”, “Modo de usar”, “Escrito a mão” e, em destaque, “Provisão poética para dias difíceis”. Há, não raro, por trás da perícia descritiva e da desenvoltura verbal, o esforço metalingüístico em torno da poesia e do poema. A apreensão, por assim dizer quase abismada dos objetos, se converte, às vezes, em especulações reflexivas. Observem-se, por exemplo, estas passagens, de “Escrito a mão”: “(...) um puro objeto, um abismo para o olhar”; “(...) Pode-se dizer que um dos caminhos da poesia é a singularidade manuscrita, a rejeição da máquina, sua proximidade com o desenho”; “O poema é um ganho simbólico obtido pela fábula da perda, ou uma perda simbólica imposta pela fábula do ganho?”. É o que se dá, também, no último dos textos referidos, acentuando-se, aqui, as alusões intertextuais. Permitam-me citá-lo mais uma vez: “(...) Eu queria a maçã de Bandeira, mas não seu quarto de hotel. Eu queria a sesta de Montale, e depois pisar nos espinhos de seu horto. Eu queria o mar de Kavafis, mas não para naufragar num canto de terra. Eu queria as lentes de cummings, sem os limites da tipografia. Queria as asas de Eliot, mas não sua velhice. Eu queria, é simples, mas bem aqui, longe de Starnbergersee”.Pierre Reverdy assinala que o traço seminal das imagens fortes, as chamadas figuras de invenção, tem sua origem na aproximação espontânea de duas realidades mais distantes. Carlos Nejar alude ao poema como “a casa das imagens”. Pois bem: Salomão Souza, Heron Moura e Marcos Siscar, por mais que se configurem suas respectivas singularidades, revelam a unidade desse tom. O tom imagético por excelência. A este tom, é claro, se associam, de uma parte, a sólida lucidez perante os artefatos da linguagem e, de outra, a matriz metacrítica do discurso poético, fruto de vivências pessoais, diversidade de leituras, imaginação e sensibilidade.
Hildeberto Barbosa Filho, poeta e crítico literário paraibano. Doutor em literatura brasileira.
(Correio das Artes, 18 e 19 de novembro de 2006)